No "Público" de 27 de Outubro
A Igreja não gostou do romance de José Rodrigues dos Santos.
Eu estou a lê-lo, vou perto da página duzentos e acho que entretém bem, mais
pela constante provocação e por eu apreciar a matéria em causa, a Bíblia e mais
concretamente os Evangelhos, do que pelo enredo em si, que é muito pobre. Parece
que no final há uma reviravolta. Lá chegarei.
A técnica narrativa, baseada na pergunta-provocação deixada
do fim de um capítulo e na resposta desenvolvida após um capítulo de permeio
que segue outra linha, é banal. Um pastiche de Dan Brown ou de outro qualquer
especialista em suspense, mas de pouca qualidade. Isto digo eu, que não sou pedreiro,
mas sei ver se um muro está direito ou torto. E se este autor imita aquele.
Como é o primeiro romance de José Rodrigues dos Santos que
leio (há dias disse que li o livro de JRdS de entrevistas, mas dele li também o
“Que é Comunicação?”, na antiga Difusão Cultural), espero que os outros sejam
melhores. Lê-se fácil, porque as letras são grandes e os capítulos curtos (com
outro tipo de paginação, o romance teria metade do volume), e entretém, como
disse, mas tudo muito low profile. Dan Brown de bandos costumes. Sem
adrenalina.
Quanto ao motivo da polémica com a Igreja. Sim, há motivo
para tal. JRdS já disse várias vezes que tudo o que lá está é sabido pela
Igreja. Sabe-se nas faculdades de teologia e em alguns grupos bíblicos. Sabem-no
os padres, embora muitos dos assuntos sejam discutidos e haja várias correntes
sobre os mesmos assuntos. Mas no romance não há contraditório. A inspectora da
judiciária italiana, católica, só teve catequese até à primeira comunhão (digo
eu, a pensar nas suas respostas, embora não acredite muito na formação bíblica
dos dez anos de catequese normais em Portugal), enquanto o historiador
português é especialista em tudo o que é antigo. Até é capaz ver os números dos
capítulos e versículos no Codex Vaticanus, que é do séc. IV, quando a Bíblia só
foi dividida em capítulos e versículos na Idade Média. Claro que JRdS só deve ter
visto o Codex Vaticanus na Internet. Mas também aí dá para notar que os capítulos
e versículos não estão numerados.
A minha especialidade não é a Bíblia e até agora ainda não
encontrei qualquer novidade em termos bíblicos. Mas o problema não está aí. O
problema está no que se diz e se conclui a partir dos dados. O problema está no
querer desmontar o edifício dogmático da Igreja dizendo: Não vem na Bíblia,
logo a Igreja inventou. Se durante algum tempo veio, era fraude, deturpação,
falsificação. Assim, a Trindade é “a mais bizarra das invenções do cristianismo”
(195), a divindade de Jesus é “fraude” (183), Mateus “aldrabou” a contagem das
gerações na genealogia de Jesus (129), Maria não era virgem, etc., etc. Em
relação, por exemplo, à virgindade de Maria, nunca se pergunta ou se afirma o
que a Igreja entende por virgindade de Maria. O fulcro do dogma está na “concepção
de Jesus por obra do Espírito Santo” – a não intervenção humana na geração de
Jesus. Mas convém ao romance não apresentar o correcto entendimento do dogma (que
também evolui), para que a confusão seja maior.
A questão da fraude da divindade de Jesus é despachada com o
início falso do versículo 3,16 da primeira Carta a Timóteo. Onde está “Deus
manifestou-se na carne”, deve estar “Aquele que se manifestou na carne”, logo…
Curiosamente, a Bíblia que sigo diz: “Aquele que foi manifestado…” Será que
esta Bíblia da Difusora Bíblica (chamada “dos Capuchinhos”) não é católica?
Numa reposta global a JRdS, ou a Tomás Noronha, à partida,
poderíamos dizer que, para o cristianismo católico, a Bíblia é “apenas” uma das
fontes maiores da revelação. A outra é a Tradição. Mas isso poderia soar a
desvalorização da Bíblia. Outra possibilidade seria responder caso a caso – o que
levaria a um texto bem maior que o do romance.
Fiquemos, para já, nas perguntas de JRdS na notícia do “Público”
acima reproduzida:
- A Igreja nega ou não que Jesus era judeu – e,
consequentemente, que Cristo não era cristão?
Não percebo bem a pergunta. Jesus era judeu. Quem ousa a
parvoíce de afirmar o contrário? Mas claro que houve quem o fizesse, diz Eco,
aqui. “Cristo” é um título, uma expressão de fé, atribuída pelos discípulos a
Jesus. Só os discípulos é que podem ser cristãos (Nietzsche dizia que só tinha
existido um cristão e esse tinha morrido na cruz – mas essa é outra história).
Pergunta inócua.
- A Igreja nega ou não nega que há fortes indícios na Bíblia
de que Maria não era virgem?
O problema está no que se entende por virgem. Muitos
teólogos católicos falam dos irmãos de Jesus, seja pelo lado da mãe, do pai ou
de ambos, sem o dogma da virgindade estar em causa. O dogma, em si, é uma proclamação
da Igreja também fundamentada com dados bíblicos.
- A Igreja nega ou não nega que existem textos fraudulentos
no Novo Testamento?
Não nega. A minha Bíblia – a dos Capuchinhos – diz, por
exemplo, que os melhores manuscritos não referem o episódio da adúltera prestes
a ser apedrejada (ev. de João), o mesmo se passando com o final de Marcos.
Ambos os textos são repudiados como fraudes no romance. Mas as Bíblias
católicas já assumiram há muito tempo que não fazem parte dos manuscritos mais
antigos e mais perto das fontes.
- A Igreja nega ou não nega que nenhum dos autores do Novo
Testamento conheceu pessoalmente o Jesus de carne e osso?
Não nega. É um dado banal dos estudos bíblicos. Fiquemos
pelos evangelhos. Em resumo, sabe-se que foram escritos após o desaparecimento
dos apóstolos. Se se perde a memória viva dos factos e mensagens, há que passá-los
a escrito. Por isso se afirma que os Evangelhos são um dos primeiros frutos da
Igreja. A Igreja é anterior aos Evangelhos escritos. De acordo com os costumes
antigos (o conceito de verdade e autoria era outro), os textos foram atribuídos
à autoridade de alguém que de facto não os escreveu, como os apóstolos Mateus
ou João, tal como se atribuía a escrita do Pentateuco (cinco primeiros livros
da Bíblia) a Moisés, quando até num deles se descreve a sua morte. Para dizer
que um texto foi inspirado, a Igreja teve basicamente três critérios, a
apostolicidade do escrito (isto é, a relação com algum apóstolo), a ortodoxia (correspondência
com aquilo em que se crê) e o uso litúrgico (uso nas celebrações dos crentes).
Daí que tenham sido declarados canónicos quatro evangelhos no meio de dezenas de
outros.
Uma última nota. Há um desfasamento entre o que a Igreja (e, já agora, o que é a Igreja?) sabe e crê e o que as pessoas (crentes, não-crentes, questionantes...) sabem e crêem? Sim, sem dúvida, principalmente em relação à parte do saber, embora haja muitos níveis e nuances e também uma grande consonância. Mas é dessa diferença que o romance vive. A esperteza de JRdS está no aproveitamento disso.
2 comentários:
Quando comecei a passar mais tempo com a Biblia aberta e à procura de Deus e Jesus nesses testemunhos, e fui descobrindo verdades que até então me escapavam, não sai para a rua a gritar "Eureka", mas olhei para mim com humildade e percebi a minha ignorância até então, sobre assuntos que pensava saber. Ao JRdS, até o pouco (nada) que sabe lhe será tirado. Devia ter feito como Paulo e procurado aprender mais e depois então sair com a sua luz para as ruas, subir aos telhados com a verdade nos lábios e construir a sua casa na montanha para toda a gente a ver. Se calhar até queria de boa vontade construir a sua torre, ou destruir de má vontade a da "Igreja", mas vai ficar já a meio caminho e toda a gente se ri dele.
Olá sr anónimo, toda a gente se ri do JRS?
Só se forem palermas como você, que não distingue a ficção da realidade.
Tem dor de cotovelo? Olhe que"é pecado"! :)
Para anónonimo, anónimo e meio.
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