Martin Buber (1878-1965)
A relação eu-isso é a nossa relação habitual com o mundo circundante, o mundo das coisas. Eventualmente, também pode acontecer esse tipo de relação com o outro ser humano. Mas então é uma relação distante, fria, como se o outro fosse um simples elemento do mundo. De qualquer forma, nos dois tipos de relação, é significativo observar que também a nossa relação connosco é diversa - o eu é diferente: relação de objectivação, indiferença ou domínio e relação de diálogo, amizade e encontro. No entanto, sabemos e experienciamos que o outro não pode ser tratado pura e simplesmente como um isso, e a razão está em que o ser humano é pessoa.
Quer se queira quer não, é um dado histórico que o contributo do cristianismo para a noção de pessoa e de que todo o ser humano é pessoa foi fundamental. Repare-se que tanto na Grécia como na Roma antigas, ser humano e pessoa não eram sinónimos. De facto, só os cidadãos livres eram sujeitos de plenos direitos e deveres; as mulheres, os escravos e as crianças, embora pertencentes ao género humano, não eram pessoas livres, gozando de plenos direitos. Como mostrou o filósofo Zubiri, "a introdução do conceito de pessoa na sua peculiaridade foi obra do pensamento cristão": o cristianismo afirmou e afirma que todo o ser humano - homem, mulher, escravo, deficiente... - é pessoa, com dignidade inviolável, porque é filho de Deus. Kant reflectirá, concluindo que nenhum ser humano pode alguma vez ser tratado como simples meio, pois é fim em si mesmo; as coisas são meios e, por isso, têm um preço - o homem, porque é fim, não tem preço, mas dignidade.
Quando pensamos na pessoa, encontramos momentos essenciais para a sua compreensão, como reflectiu M. Moreno Villa.
A pessoa é um indivíduo, mas não podemos ignorar que também uma árvore ou um carro são indivíduos. A diferença está em que um carro, por exemplo, é substituível; uma pessoa - pensemos num amigo -, não. A pessoa tem carácter de unicidade, é única, insubstituível, não permutável.
A pessoa é sujeito, isto é, autopossui-se, subsiste em si. O sujeito é, em última análise, "o eu pessoal enquanto sujeito". Mas isto não significa isolamento, pois o eu existe sempre em relação e no vínculo com outros eus e em correlação com os objectos.
Portanto, o homem é sujeito em intersubjectividade no mundo.
A pessoa é um eu, centro pessoal autoconsciente, idêntico. Mas não é sem o tu. Deve mesmo dizer-se que o tu precede o eu. De facto, antes de a criança saber que é, o que é e quem é, "é convocada à comunhão de rostos que a olham, de mãos que a acariciam, de palavras que a interpelam e a amam, as mesmas que a trouxeram à existência. Somos porque fomos amados. Por isso, a pessoa é o ser da palavra e do amor: dizemos algo sobre as coisas, mas falamos com as pessoas".
Pela sua constituição, o homem enquanto pessoa é relacional. Por isso, "em nenhuma solidão, está absolutamente só, pois somos não só o que fazemos de nós, mas também o que os outros nos fizeram; toda a solidão é, pois, sempre solidão acompanhada". Frente a Descartes, que afirmou o eu, com o perigo do solipsismo, Levinas deu o primado ao outro, numa espécie de alterismo. Ora, é preciso afirmar simultaneamente o eu e o outro, no que poderíamos chamar o "círculo ontológico interpessoal": a pessoa é e descobre-se nas relações, mas não se dissolve nelas.
Depois, não é no encontro com o outro que se pode tocar a fímbria do Eterno e fazer a experiência do Outro Transcendente enquanto Outro de todos os outros?
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