Texto de Anselmo Borges no DN deste sábado (aqui).
Como chegámos até aqui? As razões são incontáveis. Mas não me canso de repetir que a multiplicação acéfala de instituições de ensino superior foi fatal. O dinheiro corria a rodos e as pessoas interiorizaram que a fonte não secava, e instalou-se um consumismo pateta, estimulado por cartões de crédito, que os bancos davam a engolir. E voava-se a crédito para férias em Cancún. E multiplicaram-se auto-estradas, talvez porque aí era mais fácil corromper e ser corrompido. E não se investiu suficientemente no capital que não se corrompe e que ninguém rouba: o saber, a cultura, o chamado capital humano. As pessoas foram-se encostando ao Estado, pai providente e aparentemente rico. Com políticos menores, as dívidas foram crescendo, crescendo, até os credores começarem a gritar que exigiam que fossem pagas.
Agora, é a esfola. Impostos, mais impostos, novos impostos. E o desemprego a aumentar. E a pobreza e também a fome.
E a maioria da gente a pensar que mais algum tempo de sacrifícios e voltaremos ao sabor da abundância. Quem disse? Afinal, quem manda e decide? Como é possível que o mundo entre em terramoto por causa de uma nota de uma agência de rating? Mas, sobretudo, ainda se não viu que o "trabalho" é um bem escasso, que será necessário, de um modo ou outro, distribuir? Acima de tudo: como é que ainda se não percebeu que, num mundo limitado, não é possível um progresso ilimitado? E toda a gente a correr e a desfazer-se em stress e angústia para trabalhar aqui e ali e não soçobrar na avaliação. Porque, agora, a avaliação é palavra de ordem, como a concorrência. É preciso concorrer, competir. E ninguém pergunta: produzir o quê e para quê e para quem? Precisaremos de tanta quinquilharia produzida?
Mas agora é a ambição - foi sempre, mas não como agora. Ora, lá está a Escritura, na Primeira Carta a Timóteo: "Nada trouxemos ao mundo e nada podemos levar dele. A raiz de todos os males é a ganância do dinheiro. Arrastados por ele, muitos se enredaram em muitas aflições."
Não precisaremos de viver mais moderadamente e, para lá do ter, buscar o ser e ser? Já há muito, o matemático e filósofo, Prémio Nobel da Literatura, B. Russell escreveu que bastaria trabalhar quatro horas por dia, e o físico H.-P. Dürr, Prémio Nobel alternativo, disse que precisaríamos apenas de um terço do nosso tempo de trabalho para produzirmos o que é realmente importante. O outro tempo seria para a cultura...
Edgar Morin
Agora, é Edgar Morin, o pensador da complexidade, que, do alto da sabedoria dos seus 90 anos, publica "La Voie", e, a propósito, numa entrevista à "Sciences Humaines", vem dizer verdades imensas.
"O planeta Terra está metido num processo infernal que leva a Humanidade a uma catástrofe previsível. Só uma metamorfose histórica poderá permitir resolver as crises - maiores e múltiplas - ecológicas, económicas, societais, políticas, que ameaçam a própria existência das nossas civilizações em vias de unificação."
As reformas exigidas implicam uma "reforma de vida". De facto, o desenvolvimento é "uma máquina infernal de produção/consumo/destruição". Há um paralelo deste processo no plano individual: trata-se de um desenvolvimento encarado essencialmente como "quantitativo e material", que leva a uma corrida infernal para o "sempre mais" e a um mal-estar no próprio seio do bem-estar. A modernidade ocidental produziu a barbárie do cálculo, da técnica, e não inibiu suficientemente a "barbárie interior", feita de incompreensão do outro, de indiferença.
"As sociedades contemporâneas realizaram em muito o que era um sonho para os nossos antepassados: bem-estar material, conforto. Ao mesmo tempo, descobriu-se que o bem-estar material não traz a felicidade. O preço a pagar pela abundância material revela-se de um custo humano exorbitante: stress, corrida à velocidade, adicção, sentimento de vazio interior."
E volto à pergunta do título: afinal, quando vivemos? Sim, porque, como isto está, não vivemos, somos vividos.
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