Alain de Botton é um autor que aprecio, pelo conteúdo, certamente, e uma ou outra vez mais pelo método, tendo lido quatro dos seus livros (tem pelo menos seis publicados em Portugal). Agora anda por aí a divulgar a necessidade do Ateísmo 2.0, que consiste mais ou menos em não acreditar em nada, mas aproveitar as coisas boas, como a arte e a ética, que os crentes e as religiões historicamente proporcionaram.
Escrevendo sobre temas como o trabalho (estou a acabar de ler “Alegrias e Tristezas do Trabalho”), a filosofia (ele considera-se filósofo) ou o sentido da vida, é inevitável que a religião, geralmente o cristianismo, esteja presente de um modo explícito. Mas também surge sob a forma de alusão, geralmente depreciativa. Um exemplo: Falando dos contabilistas de uma consultora multinacional, afirma: “Os níveis de empenho que em sociedades anteriores eram dedicados a aventuras militares e à intoxicação religiosa foram canalizados para uma espécie de minucioso trabalho numérico”. Podia dizer somente religião. Ou causa religiosa… Intoxicação, portanto.
Noutra passagem, omitindo a parte mais substancial da verdade histórica, afirma: “Os primórdios do cristianismo associaram ao conceito de Aristóteles [que, como os gregos antigos em geral, depreciava o trabalho manual] uma doutrina ainda obscura, segundo a qual as agruras do trabalho constituíam os meios apropriados e imutáveis para se expiarem os pecados de Adão”.
A afirmação pode ter algo de verdade. Podemos encontrar textos que interpretam as agruras do trabalho (o “suor” do Génesis) como consequência do pecado de Adão. Mas omitir o resto induz em erro. E o resto é muito maior do que tal associação. Duas ou três ideias básicas.
O cristianismo mudou claramente o modo de pensar greco-latino sobre o trabalho. Os maiores protagonistas do cristianismo nascente foram trabalhadores e não intelectuais. Os exemplos mais evidentes são os de Jesus Cristo, Pedro e Paulo. Jesus foi carpinteiro. Pedro e mais alguns apóstolos eram pescadores. Paulo exortou que é preciso trabalhar para não furtar e poder partilhar (Ef 4,28) e denunciou que quem não trabalha também não deve comer (2 Ts 3,10). Embora reconhecesse que o pregador tinha direito ao sustento, como grego que também era, optou por não dar esse peso às comunidades, e foi fabricante de tendas (Act 18,3).
Esta maneira de pensar cristã levou, a longo prazo, à abolição da escravatura (não é por acaso que acontece em contexto cristão e liderada por pessoas com motivações de fé). Os Padres da Igreja consideravam que o opus servile (trabalho servil) era simplesmente opus humanum (trabalho humano) (n.º 265 do Compêndio de Doutrina Social da Igreja). São João Crisóstomo (349-407) dizia que o ócio é nocivo ao ser humano, enquanto a actividade favorece o seu corpo e o seu espírito. Ambrósio de Milão (340-397) dizia que cada trabalhador é a mão de Cristo que continua a criar e a fazer o bem. Bento de Núrsia (480-557) escolhe para lema da comunidade que funda ora et labora, “reza e trabalha”. É este lema, espalhado através das abadias beneditinas, que transforma a face da Europa, porque abençoa a actividade humana.
Escreve Thomas E. Woods Jr. ("O que a civilização deve à Igreja Católica", ed. Alêtheia), exemplificando a mudança de mentalidade que os beneditinos introduziram no continente europeu: “O papa São Gregório Magno (590-604) conta-nos uma história significativa acerca do abade Equício, um missionário do século VI de notável eloquência. Chegou ao mosteiro de Equício um enviado papal, que se dirigiu imediatamente ao scriptorium para falar com ele, pois esperava encontrá-lo entre os copistas. Mas o abade não estava ali; como lhe explicaram os caligrafistas, com toda a simplicidade: «Está lá em baixo, no vale, a cortar feno»”.
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