É imbecil dizer: eu sei que há Deus, eu sei que há vida para lá da morte; mas é igualmente imbecil dizer: eu sei que não há Deus, eu sei que tudo acaba na morte. Perante o último, está-se no domínio da crença razoável, não no domínio do saber racional. Há razões para acreditar e razões para não acreditar. De qualquer forma, o crente deve compreender o não crente, mas este também não pode atirar os crentes todos para o asilo da ignorância e da superstição.
Nos meses de Fevereiro e Março, participei como conferencista em vários colóquios e simpósios sobre o tema da morte, do além e do luto. Em todos, as salas de conferências estavam cheias - a última intervenção foi nos H U C, e as inscrições chegaram, segundo me disseram, a 865. Afinal, embora vivamos num tempo em que a morte se tornou tabu - disso não se fala -, as pessoas continuam a pensar nela. Será possível não pensar? Mesmo se ela é o impensável - diz-se que o filósofo Michel Foucault, nos seus últimos dias no hospital, terá sussurrado: "Le pire c'est qu'il n'y a rien à dire" ("O pior é que não há nada a dizer) -, é-o enquanto o impensável que obriga a pensar.
Claro que se pode sempre dizer que a morte é o mais natural - aliás, a língua portuguesa é pessimista: a palavra nada vem de res nata (coisa nascida) -, tudo o que nasce morre. A vida é como uma vela que se apaga. Mas lá está o ateu religioso Ernst Bloch, protestando: o ser humano não é uma vela. A morte humana não é redutível à morte biológica, pois o Homem é uma existência, autoconsciência, que antecipa, que pergunta ilimitadamente, também para lá da morte. Outra vez Bloch: o cadáver é a evidência, mas ninguém se contenta com o cadáver (por isso, reflectiu permanentemente sobre o enigma da morte, para dizer que o núcleo do humano é extraterritorial à morte - o que isso possa querer dizer é discutível).
Pedro Laín Entralgo, médico e filósofo, não se cansou de repetir: o saber científico é certo, mas refere-se ao que é penúltimo. O último (porque há algo e não nada?, porque existo precisamente eu?, há Deus?, há vida para lá da morte?, com a morte, acaba tudo?) é saber de crença, razoável, mas incerto. É imbecil dizer: eu sei que há Deus, eu sei que há vida para lá da morte; mas é igualmente imbecil dizer: eu sei que não há Deus, eu sei que tudo acaba na morte. Perante o último, está-se no domínio da crença razoável, não no domínio do saber racional. Há razões para acreditar e razões para não acreditar. De qualquer forma, o crente deve compreender o não crente, mas este também não pode atirar os crentes todos para o asilo da ignorância e da superstição.
Perante o último, fica-se na perplexidade. Porque lá está Wittgenstein: "Sentimos que, mesmo que todas as possíveis questões científicas tivessem recebido resposta, os nossos problemas vitais não teriam ainda sequer sido tocados". E: "Acreditar num Deus quer dizer compreender a questão do sentido da vida. Crer num Deus quer dizer ver que os factos do mundo não são, portanto, tudo. Crer em Deus quer dizer ver que a vida tem um sentido." Mas Pascal já advertira: "Incompreensível que haja Deus, e incompreensível que não haja; que a alma seja com o corpo, que não tenhamos alma; que o mundo seja criado, que não o seja, etc." Umberto Eco disse recentemente a João Céu e Silva [do DN]: "Creio que o homem é um animal religioso, que tem medo da morte e das coisas terríveis. É mais conveniente acreditar em Deus, e só os filósofos podem suportar a sua ausência". Será assim? Jürgen Habermas, talvez o maior filósofo vivo, confessou num discurso subordinado ao tema "Glauben und Wissen" ("Crer e saber"), pronunciado já depois do trágico Setembro de 2001: "A esperança perdida na ressurreição deixa atrás de si um vazio manifesto". Há aquela pergunta infinita: quem fará justiça às vítimas inocentes?
Habermas
Nestes dias de Páscoa, o que os cristãos celebram é que Jesus crucificado e morto não ficou encerrado no nada da morte, pois foi encontrado pela vida plena e eterna de Deus. Como confessou há pouco Bento XVI, muitos cristãos já não acreditam e andam confusos. Mas também é verdade que o cristianismo se mantém em pé ou se afunda segundo seja verdade ou não que Jesus é o Vivente em Deus.
Nisto, que é essencial e decisivo, o polémico teólogo Hans Küng está de acordo. Pergunta na obra recente "Was ich glaube" ("A minha fé"): "E se me tivesse enganado e na morte entrasse não na vida eterna de Deus, mas no nada? Se assim fosse - já o disse muitas vezes e estou convencido disso -, de qualquer modo teria vivido uma vida melhor e com mais sentido do que sem esta esperança".
2 comentários:
Se é imbecil dizer "eu sei que há Deus", é imbecil o dogma católico. O que é imbecil. :)
O dogma católico não diz que sabe que há Deus. Crê que há Deus. O tudo o que afirma deriva do que crê e não do que sabe. Crê em Deus, na Igreja, na ressurreição. Não podemos dizer que sabemos que há ressurreição. Mas cremos nela por causa de Jesus Cristo. O dogma católico não afirma sabedoria, afirma fé, embora se sirva da razão até certo ponto.
Mas tudo dependerá muito do que se entender por saber. A fé sem dúvida que confere uma sabedoria.
Obrigado pelo seu comentário.
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