Texto de Anselmo Borges no DN de hoje.
Um amigo jesuíta, Juan Masiá, que vive há trinta anos no Japão, contou-me uma história muito significativa, passada numa paróquia japonesa. O missionário estrangeiro começou a notar que os paroquianos deixaram de frequentar a missa por ele celebrada. Intrigado, decidiu informar-se discretamente. Foi recebendo respostas evasivas, até que alguém ganhou coragem e lhe disse: "E por causa do gato." Achou estranho, embora se lembrasse de que uns meses antes tinha agarrado pelo rabo um gato vadio que andava pela cozinha e o tinha atirado contra a parede. No entanto, não via razão para o afastamento dos paroquianos. Quando tentaram explicar-lhe, disse-lhes, indignado: "Tanto esforço para ensinar-vos que o ser humano tem alma e os animais não e agora ficais chateados por causa da morte do gato, um animal irracional?!" Mas os cristãos responderam-lhe: "O problema não é a alma do gato, se tem ou não tem alma. O problema é você. Que terá no íntimo do coração, se foi capaz de a sangue frio esborrachar o gato contra a parede?"
Ainda se continua a escrever aqui e ali: "proibida a entrada de animais", "no animals", esquecendo que os seres humanos também são animais. É necessário tomar consciência de que a humanidade não se pode pensar isolada, pois fazemos parte da comunidade natural da vida, em relação com animais e plantas, respirando o mesmo ar, tendo a mesma exigência de alimentação e água, na mesma terra e sob o mesmo céu, o que implica, contra o monopólio antropocêntrico explorador e dominador, um paradigma holístico de existência.
O cristianismo é agora apresentado como sendo um dos responsáveis pelo antropocentrismo arrogante e pela crise ecológica, por causa da ordem de Deus aos seres humanos no Génesis: "Dominai a terra." Mas, como reconhecem os exegetas, trata-se de uma interpretação errada da Bíblia, já que o que lá se encontra nada tem a ver com domínio despótico, mas apenas com guardar e cuidar da Criação, contribuindo para o seu aperfeiçoamento responsável, no quadro de um desenvolvimento harmónico do conjunto de todas as criaturas. Aliás, a aliança de Deus, depois do dilúvio, simbolizada pelo arco-íris, inclui todas as criaturas.
Há dois extremismos a evitar. O antropocentrismo tecnocientífico moderno, que vê o homem fora da natureza e o coloca na posição de sujeito objectivante e explorador da natureza, como se esta não tivesse valor próprio e se reduzisse a um reservatório de energias a dominar. A chamada deep ecology, que invoca uma natureza divinizada, encerra o homem na totalidade naturalista, cósmico-biológica, esquecendo a sua singularidade única de pessoa.
Assim, independentemente do debate sobre os direitos dos animais, a analisar em artigo próximo, não há dúvida de que temos obrigações para com eles, concretamente quando se reflecte no seu sofrimento. São inadmissíveis a tortura e a crueldade bem como sofrimentos desnecessários. Neste contexto, é necessário pôr em causa, por exemplo, as touradas.
Mesmo Kant, que só reconhecia direitos às pessoas como fins em si, referiu a insensibilidade face aos animais como reveladora de desumanidade e anti-educativa, tendo escrito: "Aquele que se comporta cruelmente com os animais possui também um coração endurecido com os humanos", de tal modo que "se pode conhecer o coração humano a partir da sua relação com os animais". Admitiu alguma experimentação com animais, mas opôs-se à experimentação irresponsável, concretamente à vivissecção.
Sobre esta problemática lê-se no Tratado de Lisboa: "Na definição e aplicação das políticas da União nos domínios da agricultura, da pesca, dos transportes, do mercado interno, da investigação e desenvolvimento tecnológico e do espaço, a União e os Estados membros terão plenamente em conta as exigências em matéria de bem-estar dos animais, enquanto seres sensíveis, respeitando simultaneamente as disposições legislativas e administrativas e os costumes dos Estados membros, nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e património regional".
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