É bem sabido que Deus escreve direito por linhas tortas. Este ditado que dizem ser tipicamente português, embora haja uma frase semelhante no Antigo Testamento, e muito apreciado por Yves Congar (também já ouvi dizer que era Rahner que gostava dele, relacionando-o com Portugal), vem a propósito do desenvolvimento dos processos judiciais norte-americanos que pretendem levar a Santa Sé à barra dos tribunais.
Notícias recentes dizem que o advogado William McMurry, de Louisville, pretende abandonar o processo que ficou conhecido como “O'Bryan versus Santa Sé”. Não é o advogado mais aguerrido. Este, Jeffrey Anderson, que alguns católicos vêem como “o rosto do mal” (“face of evil”, aqui), continua de pedra e cal a querer condenar o Papa no processo “Doe versus Santa Sé”.
William McMurry focava a defesa das vítimas do clero neste ponto: em vez de acusar Roma pela responsabilidade dos padres, afirmava que Roma era responsável pela supervisão negligente dos bispos locais, supondo que estes são uma espécie de “empregados” ou “agentes” do Vaticano. “Como é mais fácil ligar os pontos entre Roma e as decisões de um bispo diocesano, ao contrário de ligar os pontos entre Roma e o comportamento de um padre comum, muitos analistas sentiam que o caso O'Bryan lançava o desafio legal mais significativo para o Vaticano”, escreve John L. Allen Jr., no “National Catholic Reporter” (10-08-2010).
Ora, o abandono do processo acontece na sequência da apresentação de dois “longos memorandos” do canonista Edward Peters por parte do advogado do Vaticano, Jeffrey Lena. Os memorandos defendem a autonomia do bispo local. “Afirmar que os bispos nada mais são do que empregados do Vaticano é "contrário aos princípios básicos que subjazem à estrutura da Igreja", diz um dos documentos.
Daí que conclua John L. Allen Jr.: “Como esses memorandos foram entregues em nome da Santa Sé, eles carregam sem dúvida um status semi-oficial como expressões da política do Vaticano. A natureza da relação entre o papado e os bispos tem sido há muito tempo um ponto muito discutido, o que sugere que esses documentos possam ser levados em consideração em círculos teológicos muito tempo depois de os advogados se terem esquecido da acção judicial abandonada que os motivou”. E eu acrescento: Deus escreve direito por processos tortos.
Este texto tem por base o que li aqui.
Sem comentários:
Enviar um comentário