Concordo com a Fernanda na sua última frase, a que está mais correcta em todo o texto. É altura de parar com o disparate. A Lei de Separação, que hoje ninguém da Igreja põe em causa, até o Papa a louvou, indirectamente, na chegada a Lisboa, ao referir que a República deu liberdade de acção à Igreja, foi de facto dolorosa para a Igreja. Ou não é doloroso perder os bens, por exemplo?
Basta ler o Artigo 62 para perceber que ninguém de bom senso poderia aceitá-la:
“Todas as catedrais, igrejas e capelas, bens imobiliários e mobiliários, que têm sido ou se destinavam a ser aplicados ao culto público da religião católica e à sustentação dos ministros dessa religião e doutros funcionários, empregados e serventuários dela, incluindo as respectivas benfeitorias e até os edifícios novos que substituíram os antigos, são declarados, salvo o caso de propriedade bem determinada de uma pessoa particular ou de uma corporação com personalidade jurídica, pertença e propriedade do Estado e dos corpos administrativos, e devem ser, como tais, arrolados e inventariados, mas sem necessidade de avaliação nem de imposição de selos, entregando-se os mobiliários de valor, cujo extravio se recear, provisoriamente, à guarda das juntas de paróquia ou remetendo-se para os depósitos públicos ou para os museus”.
E como este exemplo, a lei de 1911 tem dúzia deles. Claro que Fernanda Câncio só vê o que lhe interessa. Falar hoje de liberdade religiosa (“A religião do reino” é o título do texto) – que na altura alguma hierarquia católica tinha dificuldade em conceber, mas que a Igreja universal aceitou há meio século – e a seguir citar exemplos de uma lei monárquica é interessante em termos históricos. Mas é abusivo, já que ela logo no início mostra a sua intenção: desmentir a “brutalidade infligida ao país”. O facto de hoje toda a gente concordar com a liberdade religiosa (ou quase, porque há alguns, em diferentes religiões, que não concordam com a liberdade religiosa) não é a óptica correcta para falar do que aconteceu há cem anos, porque a questão da liberdade religiosa é apenas um aspecto da Lei da Separação. O menos polémico, aliás. E não foi, na realidade o mais doloroso. As pessoas continuaram a ser maioritariamente católicas. A brutalidade vem de outros lados. Mas os seus e os meus olhos não são os melhores para revelar se aquilo na altura foi uma brutalidade. Não estivemos lá. Os que viveram os acontecimentos é que podem falar disso. E o que dizem é que foi mesmo uma brutalidade. Os historiadores de hoje dizem que as pessoas de então sentiram a Lei da Separação como uma brutalidade. Nenhum historiador sério disso duvida. Fernanda Câncio, hoje, diz que não foi assim e a seguir invoca uma Lei ainda anterior - o que mais ajuda à manipulação.
Como não é historiadora (eu também não, mas tenho escrúpulos), pode dar-se ao luxo de manipular os factos e as mentalidades. Pelo texto perpassam pelo menos dois disparates. Um é o da sinédoque, o de tomar a parte pelo todo (liberdade religiosa pela Lei da Separação). Outro é o do anacronismo, avaliar os acontecimentos de ontem pelas categorias de hoje. Estas duas formas de analisar as coisas são boas para fazer humor. Mas quando se trata de opinião que se pretende séria, sai disparate. E "é altura de parar com o disparate". Cá está.
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