Bento Domingues refere na sua crónica um texto de Timothy Radcliffe que foi publicado na revista inglesa “The Tablet” (10-04-2010). Pode ser lido em inglês aqui. Apresento uma versão em português traduzida (para português do Brasil) por Moisés Sbardelotto (daqui) e retocada por mim. O dominicano português refere-se também ao texto de Hans Kung, aqui apontado, mas que já não se encontra on-line livremente. Penso que amanhã poderei colocar neste blogue a versão integral do texto (aqui).
As novas revelações de abusos sexuais por padres na Alemanha e na Itália provocaram uma onda de raiva e de desgosto. Recebi e-mails de pessoas de toda a Europa a perguntar como ainda podem ficar na Igreja. Recebi até um formulário com o qual poderia renunciar à minha participação na Igreja. Por que ficar?
Primeiro, por que ir? Algumas pessoas sentem que não podem mais ficar associadas a uma instituição que é tão corrupta e perigosa para as crianças. O sofrimento de tantas crianças é, de facto, horroroso. Elas devem ser a nossa primeira preocupação. Nada do que vou escrever pretende, de forma nenhuma, diminuir o nosso horror diante do mal dos abusos sexuais. Mas as estatísticas para os EUA, do “John Jay College of Criminal Justice” de 2004, indicam que o clero católico não causou mais ofensas do que o clero casado de outras Igrejas.
Algumas pesquisas apresentam até um nível menor de transgressões por parte dos padres católicos. Eles são menos propensos a cometer transgressões do que professores leigos de escolas, e talvez essa probabilidade em comparação com a população em geral não chegue a metade. O celibato não leva as pessoas ao abuso de crianças. É simplesmente uma inverdade imaginar que deixar a Igreja para ir para outra denominação deixaria os nossos filhos mais seguros. Devemos encarar o terrível facto de que o abuso de crianças está espalhado por todas as partes da sociedade. Fazer da Igreja um bode expiatório seria uma forma de encobrimento.
Mas e os encobrimentos dentro da Igreja? Os nossos bispos não foram chocantemente irresponsáveis ao transferir os abusadores de um lado para o outro, não os denunciando à polícia e, assim, perpetuando os abusos? Sim, às vezes. Mas a grande maioria desses casos remonta aos anos de 1960 e 1970, quando os bispos geralmente consideravam os abusos sexuais como um pecado em vez de uma condição patológica também, e quando os advogados e psicólogos comummente lhes tranquilizavam dizendo que era seguro transferir os padres depois do tratamento. É injusto projectar no passado uma consciência de natureza e de seriedade dos abusos sexuais que simplesmente não existia então. Foi apenas a ascensão do feminismo no final da década de 70 que, ao lançar luz sobre a violência de alguns homens contra mulheres, nos alertou sobre o terrível dano cometido contra crianças vulneráveis.
Mas e o Vaticano? O Papa Bento XVI assumiu uma linha forte ao abordar essa questão como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e logo que se tornou Papa. Agora, os dedos estão apontados contra ele. Parece que alguns casos denunciados à Congregação sob a sua guarda não foram tratados. A credibilidade do Papa não está minada? Há manifestantes em frente à Basílica de São Pedro pedindo a sua renúncia. Eu estou moralmente certo de que ele não carrega nenhuma culpa nesta questão.
Geralmente, imagina-se que o Vaticano é uma organização ampla e eficiente. De facto, ele é muito pequeno. A Congregação para a Doutrina da Fé emprega 45 pessoas, lidando com questões doutrinárias e disciplinares de uma Igreja que tem 1,3 mil milhões de membros, 17% da população do mundo e cerca de 400 mil padres. Quando eu tive contacto com a Congregação como Mestre da Ordem Dominicana, era evidente que eles estavam-se a esforçar para dar conta do recado. Os documentos passavam despercebidos. O cardeal Joseph Ratzinger lamentou comigo que a equipa era simplesmente muito pequena para o trabalho.
As pessoas estão furiosas com a falha do Vaticano em abrir seus arquivos e oferecer explicações sobre o que aconteceu. Por que ele é tão secreto? Católicos com raiva e dor sentem-se no direito de ter um governo transparente, e eu concordo. Mas devemos, com justiça, compreender por que o Vaticano é tão autoprotector. Houve mais mártires no século XX do que em todos os séculos anteriores somados. Bispos e padres, religiosos e leigos foram assassinados no Leste Europeu, nos países soviéticos, na África, na América Latina e na Ásia.
Muitos católicos ainda sofrem prisões e morte por causa da sua fé. Claro, o Vaticano tende a acentuar a confidencialidade: isso foi necessário para proteger a Igreja de pessoas que desejavam destruí-la. Assim, é compreensível que o Vaticano reaja agressivamente a demandas por transparência e que leia os pedidos legítimos por abertura como uma forma de perseguição. E alguns elementos dos media desejam realmente, sem dúvida, prejudicar a credibilidade da Igreja.
Mas temos uma dívida de gratidão para com a imprensa pela sua insistência para que a Igreja encare suas falhas. Se não fosse pelos média, então esses abusos vergonhosos continuariam sem ser discutidos.
A confidencialidade também é uma consequência da insistência da Igreja sobre o direito de todos os acusados a manterem o seu bom nome até que sejam provados culpados. Isso é muito difícil de entender para a nossa sociedade, cujos média destroem a reputação das pessoas sem sequer pensar.
Por que ir embora? Se é para encontrar um porto mais seguro, uma Igreja menos corrupta, então eu acho que vai ficar decepcionado. Eu também almejo um governo mais transparente, um debate mais aberto, mas o segredo da Igreja é compreensível e às vezes necessário. Entender nem sempre é fechar os olhos, mas é preciso se queremos agir com justiça.
Por que ficar? Devo colocar minhas cartas sobre a mesa. Mesmo que a Igreja fosse obviamente pior do que outras Igrejas, mesmo assim não iria embora. Não sou católico porque a nossa Igreja é a melhor, ou mesmo porque eu gosto do catolicismo. Amo realmente muitas coisas da minha Igreja, mas existem aspectos dela de que eu não gosto. Eu não sou católico por causa de uma opção de consumo num "Waitrose" em vez de num "Tesco" eclesiásticos [marcas de supermercados ingleses], mas sim porque acredito que ela encarna algo que é essencial ao testemunho cristão da Ressurreição: a unidade visível.
Quando Jesus morreu, a sua comunidade dividiu-se. Ele tinha sido traído, negado, e muitos dos seus discípulos fugiram. Foram principalmente as mulheres que o acompanharam até o fim. No Dia da Páscoa, ele apareceu aos discípulos. Foi mais do que uma ressuscitação física de um cadáver.
Nele, Deus triunfou sobre tudo o que destrói a comunidade: pecado, covardia, mentiras, incompreensão, sofrimento e morte. A Ressurreição tornou-se visível para o mundo por meio da visão impressionante do renascimento de uma comunidade. Aqueles covardes e negadores reuniram-se novamente. Eles não eram um grupo honrado, e envergonharam-se daquilo que tinham feito, mas novamente eram um. A unidade da Igreja é um sinal de que todas as forças que fragmentam e dispersam são derrotadas em Cristo.
Todos os cristãos são um no Corpo de Cristo. Eu tenho o mais profundo respeito e afecto pelos cristãos das outras Igrejas que me alimentam e inspiram. Mas essa unidade em Cristo precisa de uma encarnação visível. O cristianismo não é uma espiritualidade vaga, mas sim uma religião da encarnação, em que as verdades mais profundas assumem a forma física e às vezes institucional. Historicamente, essa unidade encontrou o seu foco em Pedro, a Rocha de Mateus, Marcos e Lucas e o pastor do rebanho do evangelho de João.
Desde o princípio e ao longo da história. Pedro muitas vezes foi uma rocha vacilante, uma fonte de escândalo, corrupta, e mesmo assim ele é o escolhido – e seus sucessores –, cuja tarefa é nos manter unidos, de forma que possamos testemunhar a vitória de Cristo no Dia da Páscoa sobre o poder de divisão do pecado. E assim a Igreja está colada a mim independentemente do que acontecer. Podemos até nos envergonhar em admitir que somos católicos, mas Jesus teve companhias vergonhosas desde o princípio.
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