sábado, 15 de maio de 2010

Anselmo Borges: Inocência e Teologia

Há anos, ia eu a passar por um mercado, no Maputo, e ouço uma negra a dizer para outra: "O Deus dos cristãos é muito mau: porque a primeira mulher ofereceu uma maçã ao marido e ambos comeram, castigou a humanidade com os males todos que tão bem conhecemos..."


E eu pensei para mim que, se fosse como ela dizia, tinha toda a razão. Mas não foi isso que foi frequentemente transmitido? Seja como for, não é admissível essa leitura.


O que lá está, de facto, é de tal modo imenso que se torna inesgotável. No essencial, do que se trata é da passagem da animalidade à humanidade. No jardim do Éden, está a inocência própria da animalidade. O mito narra então a constituição do ser humano: quando aparece o animal humano, perdeu-se a inocência e entrou-se na "nocência" - o étimo é o verbo latino nocere: fazer mal, prejudicar, causar a morte de. Por outras palavras, o que constitui o ser humano é a liberdade, a capacidade de distinguir o bem e o mal, e a grandeza de livremente fazer o bem e a tragédia de poder fazer o mal.


Lá está: "se comerdes da árvore do conhecimento do bem e do mal", sabereis que estais nus - refere-se à nudez metafísica: o homem já não faz um com a natureza, mas dois, e, por isso, é um ser moral -, e que sois mortais - o animal não humano também morre, mas não sabe que é mortal.


Então, como tenho repetido aqui, a moral é autónoma e, antes de ser uma questão em conexão com a religião, é uma questão constitutivamente humana. Pelo facto de ser um prematuro e de ser livre, o homem precisa de fazer-se e deve fazer-se bem, adequadamente. A. Torres Queiruga viu bem esta exigência de autonomia. A exigência moral não nasce de facto de se ser crente ou ateu, mas "da condição simplesmente humana de querer ser pessoa autêntica e cabal". Se se pensar a sério e desde que ambos queiram ser honestos, "não existe nada que a nível moral deva fazer um crente e não um ateu" (o seu desacordo em muitas opções será, em rigor de termos, por motivos morais e não propriamente religiosos).


Na perspectiva cristã, na raiz do real, está a liberdade e o amor: Deus criou livremente, por amor. Então, não criou por causa de si, mas por causa das criaturas, que são autónomas. Deste modo, ao reconhecer-se como criatura de Deus, a pessoa sabe que "a lei do seu ser e a vontade de Deus sobre ela são uma e a mesma coisa, pois Deus quer única e exclusivamente que a criatura se realize", de tal modo que dizer: "quero realizar o meu ser" e dizer: "quero cumprir a vontade de Deus" se identificam. É neste sentido que a teonomia se não opõe à autonomia; pelo contrário, está na sua raiz, funda-a.


Isto não significa que a religião e a teologia sejam indiferentes para a moral: vêm inevitavelmente à mente, quando se pensa na sua fundamentação incondicional e na conexão de moral e esperança.


Neste contexto e concretamente na presente situação de indiferença religiosa em conexão com a moral, confronto o leitor com algumas preocupações do filósofo agnóstico Max Horkheimer, um dos fundadores da Escola Crítica de Frankfurt: "É inútil pretender salvar um sentido incondicional sem Deus. A morte de Deus é também a morte da verdade eterna." A sociedade não pode manter-se com uma ética positivista: "Do ponto de vista do positivismo, não é possível desenvolver uma política moral. A partir da perspectiva meramente científica, o ódio não é pior do que o amor. Não há nenhum raciocínio logicamente concludente para que eu não deva odiar, se isso me não trouxer nenhuma desvantagem social. Como pode argumentar-se com rigor que eu não devo odiar, se isso me divertir? O positivismo não encontra nenhuma instância transcendente aos homens que distinga entre o altruísmo e o afã de lucro, entre bondade e crueldade, entre egoísmo e autodoação. Todos os intentos de fundamentar a moral na prudência terrena em vez de na referência a um além... apoiam-se em ilusões harmonizadoras. Tudo o que tem a ver com moral assenta em última instância na teologia."


Fonte: DN

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