É possível fazer um balanço da viagem do Papa? O que aí fica não passa de breve tentativa.
1. Quem é que nos visitou? Um Papa que é um intelectual afamado, reconhecido por crentes e não crentes. Foi um dos peritos do Concílio Vaticano II.
Amigo do colega teólogo Hans Küng, seguiram caminhos diferentes a partir de 1968. Quando viu a ameaça do radicalismo ateu dos estudantes de Teologia, que consideravam a cruz uma "expressão da adoração sadomasoquista da dor" e o Novo Testamento um "meio de enganar as massas", deixou a Universidade de Tubinga e foi para Ratisbona. Hans Küng escreveu nas suas Memórias: "Ratzinger rejeitou totalmente aquele caos de 1968 e creio que foi esse o ponto decisivo da sua mudança para uma orientação conservadora".
2. A Portugal chegou como conservador. Trazia igualmente a fama de distante. Encontrei-me com ele uma vez em Roma e pareceu-me uma pessoa agradável, embora tímido. Confirmei que assim é: apareceu como um homem afável, um intelectual de grande estatura, mas humano e profundamente crente. Foi essa a imagem que deixou ao povo português. Mas ele também saiu diferente, mais humano - por vezes, emocionou-se. Afinal, a emoção sem razão é cega, mas a razão sem emoção é fria. A razão autenticamente humana é a razão sensível. Uma das palavras mais repetidas por ele foi compaixão. De facto, a razão não confrontada com o sofrimento pode tornar-se monstruosa.
3. Foi claro na afirmação da laicidade do Estado: saudou a separação da Igreja e do Estado. Para quem pensava que abandonara o Concílio Vaticano II, sublinhou a sua importância para o diálogo entre a Igreja e o mundo. Recebeu representantes de outra religiões. Falando ao mundo da cultura, teve afirmações inesperadas: a Igreja tem a convicção de que Jesus Cristo é a verdade eterna encarnada, mas ela está a aprender a conviver com outras "verdades" e a verdade dos outros. Sim, quer uma Igreja que não renuncie à sua identidade, mas ela está aberta à urgência do diálogo entre as culturas e as religiões. A Igreja não tem a verdade toda e é pelo diálogo que se chega a uma verdade sempre maior e à paz.
4. Empenho essencial é trazer a razão à fé. Não é o cristianismo a religião do Logos (Razão) e do Amor? Em Fátima, mostrou que é preciso recentrar o cristianismo: o centro é Cristo e não Maria. E, como especialista em Santo Agostinho, deixou um texto que abre à possibilidade de uma reinterpretação mística das chamadas "aparições". A revelação não cai do Céu. A mística autêntica não implica fenómenos extraordinários, como levitações, aparições, etc. Do que se trata é de se dar conta, no mais profundo e íntimo da realidade, da presença do Deus vivo, pois, como disse Santo Agostinho, Deus é mais íntimo a mim do que a minha mais íntima intimidade. Deus não vem "de fora". É transcendente, mas na imanência mais radical. Assim, o que se passou em Fátima tem a ver com uma profunda experiência religiosa de crianças, no contexto sociocultural da época.
5. Deixou uma imensa mensagem de esperança, tão urgente neste tempo dramático de crise. E apelou à solidariedade e à justiça, a favor dos mais pobres.
Por isso, aqui, é legítimo perguntar se não se impunha mais simplicidade nesta visita. De facto, é um líder espiritual mundial que é ao mesmo tempo Chefe de Estado. Dizia-me uma vez em Bruxelas um colega da Universidade de Lovaina: como foi possível a Igreja de Cristo ter chegado aqui? É uma herança histórica, difícil de afastar. Mas não se exigirá menos ostentação?
6. As celebrações foram belas. Mas é necessário estar atento para que todos possam ouvir. Sobretudo, há ali uma distância, que, vistas as coisas de fora, faz com que a vivência que pode ficar é a de duas Igrejas: no altar, a Igreja imperial, e cá para baixo o povo, que ouve e obedece. Não se tem a experiência viva de uma Igreja-comunhão e autêntico Povo de Deus.
Por outro lado, lá, no altar, só há homens celibatários. Estou convicto de que, com o tempo, também se há-de lá ver, a concelebrar, padres casados e mulheres ordenadas.
Fonte: DN
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