Texto de D. Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa, no Correio da Manhã desta sexta-feira. O último da sua autoria, como diz na última frase.
Que mal te fiz eu?
"Que mal nos fez Deus para o tratarmos mal, com indiferença, com comportamentos indignos?"
Quem hoje participar na celebração da Paixão ouvirá cantar com muita probabilidade, durante a adoração da cruz, os impropérios dirigidos por Deus ao seu povo. O texto completo do refrão assim repete: "Meu povo, que mal te fiz eu? Em que te contristei? Responde-me."
A enumeração dos benefícios operados por Deus contrasta com as atitudes do povo para com Jesus: "Libertei-te da terra do Egipto e tu preparaste uma cruz para o teu Salvador", "abri o mar diante de ti e tu abriste-me o peito com uma lança", "dei-te o ceptro real e tu colocaste-me na cabeça a coroa de espinhos…"
Que mal nos fez Deus para o tratarmos mal, com indiferença ou desprezo, com comportamentos indignos? Será que temos alguma tristeza, alguma mágoa proveniente de um acto de Deus? Aguarda resposta, pede argumentos justificativos das atitudes. Desafia: "responde-me". Considerei oportuno actualizar, neste dia, as possíveis razões de queixa de Deus aos crentes. Perdoem-me o atrevimento de dar voz ao silêncio de Deus:
Ofereci-te a beleza da criação e tu danificas a natureza e atentas contra a vida! Vives num universo imenso e reduzes os horizontes a ti próprio!
Muni o teu ser de inteligência e semeei-lhe o desejo da verdade, e tu matas a sede de procurar com ilusões e anestesias mentirosas. Criei-te para a relação, incluindo a vivência da sexualidade num projecto de vida humanizador, e tu não dominas nem vives com liberdade essa energia espantosa! Entreguei ao teu governo tantos bens da natureza e tu recusas-te a partilhá-los com generosidade!
Pensei-te apto para viver a alegria e escolher a felicidade, mas enredas e complicas o sentido da vida com múltiplos medos!
Rasgo na história sinais de esperança, em homens e mulheres que captam a direcção do futuro, e ficas mergulhado em olhares acusadores e mesquinhos!
Entendo cada ser humano, mesmo criminoso, porque percebo as cadeias da maldade colectiva, e estranho a forma justiceira com que atiras pedras! Distingo absolutamente o bem do mal, mas fico admirado como, recorrendo a meios de maldade obscura, tu destróis e abates a luz da bondade!
E Deus podia continuar…
Em Sexta-Feira Santa, no dia do quinto aniversário da morte de João Paulo II e de grande significado pessoal, com este artigo, suspendo a colaboração com este jornal. Obrigado aos leitores.
D. Carlos Azevedo, Bispo Auxiliar de Lisboa
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