sábado, 10 de abril de 2010

Anselmo Borges: A lei do celibato obrigatório

Texto de Anselmo Borges no DN de hoje, aqui.


Dizia-me há dias um colega historiador que a lei do celibato obrigatório para os padres fez mais mal à Igreja e aos homens e mulheres do que bem. E eu estou com ele.


Jesus foi celibatário como também São Paulo. Mas foram-no por opção livre, para entregar-se inteiramente a uma causa, a causa de Deus, que é a causa dos seres humanos na dignidade livre e na liberdade com dignidade. Mas nem Jesus nem Paulo exigiram o celibato a ninguém. Jesus disse expressamente que alguns eram celibatários livremente por causa do Reino de Deus. E São Paulo escreveu na Primeira Carta aos Coríntios que permanecer celibatário é um carisma, e, por isso, "para evitar o perigo de imoralidade, cada homem tenha a sua mulher e cada mulher, o seu marido". Há a certeza de que pelo menos alguns apóstolos eram casados, incluindo São Pedro. Na Primeira Carta a Timóteo lê-se: "O bispo deve ser homem de uma só mulher."


Foi lentamente que a lei do celibato se foi impondo na Igreja Católica, embora com excepções: pense-se, por exemplo, nas Igrejas orientais ou nos anglicanos unidos a Roma.


Na base do celibato como lei, há razões de vária ordem: imitar os monges e o seu voto de castidade, manter os padres e os bispos livres para o ministério, não dispersar os bens eclesiásticos, evitar o nepotismo... A concepção sacrificial da Eucaristia foi determinante, pois o sacrifício implica o sacerdote e a pureza ritual. Assim, o bispo de Roma Sirício (384-399) escreveu: "Todos nós, padres e levitas, estamos obrigados por uma lei irrevogável a viver a castidade do corpo e da alma para agradarmos a Deus diariamente no sacrifício litúrgico."

Neste movimento, a Igreja foi-se tornando cada vez mais rigorosa, tendo papel decisivo o Papa Gregório VII (1073-1085), com o seu modelo centralista: da reforma com o seu nome - reforma gregoriana - fez parte a obrigação de padres e bispos se separarem das respectivas mulheres e a admissão à ordenação sacerdotal apenas de candidatos celibatários. Foi o II Concílio de Latrão (1139) que decretou a lei do celibato, proibindo os fiéis de frequentarem missas celebradas por padres com mulher.


A distância entre a lei e o seu cumprimento obrigou a constantes admoestações e penas para os prevaricadores, como se pode constatar no decreto do Concílio de Basileia (1431-1437) sobre o concubinato dos padres. Lutero ergueu-se contra a lei, respondendo-lhe o Concílio de Trento: "É anátema quem afirmar que os membros do clero, investidos em ordens sacras, poderão contrair matrimónio." Os escândalos sucederam-se, mesmo entre Papas: Pio IV, por exemplo, que reforçou a lei, teve três filhos. O famoso exegeta Herbert Haag fez notar que a contradição entre teoria e prática ficou eloquentemente demonstrada durante o Concílio de Constança: os seus participantes tiveram à disposição centenas de prostitutas registadas.


Os escândalos de pedofilia por parte do clero fizeram com que o debate, proibido durante o Concílio Vaticano II e ainda, em parte, tabu, regressasse. Se não é correcto apresentar o celibato como a causa da pedofilia - pense-se em tantos casados pedófilos, concretamente no seio das famílias -, também é verdade que a lei do celibato enquanto tal não é a melhor ajuda para uma sexualidade sã. Muitos perguntam, com razão, se uma relação tensa com a sexualidade por parte da Igreja não terá aqui uma das suas principais explicações.


Seja como for, o celibato obrigatório não vem de Jesus, é uma lei dos homens, e, como disseram os apóstolos: "Importa mais obedecer a Deus do que aos homens." E os bispos e o Papa são homens.


É contraditório afirmar o celibato como um carisma e, depois, impô-lo como lei. Por isso, muitas vozes autorizadas na Igreja pedem uma reflexão séria sobre o tema. Há muito que o cardeal Carlo Martini faz apelos nesse sentido. Agora, junta-se-lhe o cardeal Ch. Schönborn, de Viena. O bispo auxiliar de Hamburgo, J.-J. Jaschke, sem pôr em causa o celibato livre, afirmou que "a Igreja Católica se enriqueceria com a experiência de padres casados".


Apenas dois comentários ao texto do padre Anselmo Borges


1) Diz: "Jesus foi celibatário como também São Paulo". Se em relação a Paulo há dúvidas sobre o seu celibato, devido a afirmações ambíguas - diz a certa altura que leva consigo "uma irmã" - fazendo supor que nem sempre terá sido celibatário, em relação a Jesus não há certezas. Que é celibatário, é uma presunção. Os evangelhos não dizem nada sobre isso. Pressupõe-se. Mas se se pretender pressupor de acordo com a regra geral do tempo, que era um homem ser casado, devemos pressupor que poderia ser casado. Um exemplo banal: Se não se diz que uma pessoa só tem um braço, é porque tem os dois. Se só tivesse um, dizia-se. Há biblistas que defendem esta regra da continuidade em relação a Jesus. John P. Meier, biblista norte-americano de renome, padre católico, refere a tese do casamento de Jesus e aponta autores, embora não a defenda. Mas não a descarta peremptoriamente, sinal das dúvidas exegéticas que persistem.


2) Diz: "Jesus disse expressamente que alguns eram celibatários livremente por causa do Reino de Deus". Este é um dos casos mais célebres de descontextualização de uma afirmação de Jesus. Sendo provável que Anselmo Borges tenha em mente Mt 19,1-12, o que está em causa é o casamento e o divórcio, não uma pretensa ligação ao ministério sacerdotal. Os "eunucos que se fizeram a si mesmos por amor do Reino dos Céus" são os que aceitam não repudiar a sua mulher e que são fiéis, mesmo depois do adultério da outra parte. São os que no seu agir vão para além da Lei de Moisés, que permitia o repúdio da mulher. O contexto é todo de casamento. E de lei, aos olhos de hoje, machista.

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