domingo, 25 de outubro de 2009

Saramago e o conflito de interpretações

Saramago é um resistente. Consegue estar em muitos lados. Hoje está no DN. E diz:

"Desde há muitos anos que eu venho dizendo que a Bíblia tem umas quantas histórias mal contadas. Uma é a do David, supostamente o herói David, que matou o gigante Golias porque tinha uma "pistola", que era aquela funda, que se lhe parecia muito. Se Golias se aproximasse dele, provavelmente fazia-o em pedaços, mas David dispara-lhe uma pedra que atinge Golias na testa, este cai desmaiado e David aproxima-se e corta-lhe a cabeça. Onde é que está o acto heróico? Não há". Ler entrevista aqui.

E o Jonas na barriga do peixe? E o Tobias? E Babel? E Daniel na cova dos leões? E os magos? E os cavaleiros do Apocalipse? Há pelo menos 365 histórias mal contadas (a julgar pelo livro infantil que ali tenho e que apresenta uma para cada dia do ano).

Vale a pena ler as entrevistas de Saramago, até para perceber como o que dizemos (e aqui ponho-me do lado a Igreja, a que pertenço e gosto de pertencer, mesmo com críticas - a conversa é eterna) pode ser mal entendido por quem nos ouve. Pelos vistos, as histórias bíblicas, segundo Saramago, não têm qualquer encanto. Estão mal explicadas. Se fosse ele a escrevê-las, ganhavam logo enlevo. As iniciais em maiúsculas, dos nomes próprios, desapareciam, fazendo lembrar a antiga URSS. “Deus” escrevia-se com minúscula e “Komitet Gosudarstveno Bezopasnosti” com três maiúsculas. Punha pelo meio “arame farpado”, “porta-aviões” e “pessoal de limpeza”, como faz em “Caim”, e a Bíblia tornava-se um best-seller.

As interpretações de Saramago fazem-me lembrar uma discussão que tive quando estudava jornalismo em Lisboa. Falava-se de Bíblia, creio que a propósito de Ecologia. A certa altura, disse que na cultura bíblica do Antigo Testamento, não só os judeus como também os escravos e até os animais e os campos tinham direito ao descanso (os campos de sete em sete anos e os outros de sete em sete dias). O que disse, e que para mim era um sinal de avanço social da cultura bíblica em comparação com as outras circundantes, soou aos ouvidos dos colegas, entretanto juntados à conversa, como: “Mas a Bíblia defende a escravatura?” E dali já não consegui sair. A Bíblia defendia a escravatura e não havia nada a fazer. Não adiantou invocar a acção de Jesus e de Paulo (tratar como irmão o escravo Onésimo), a “revolução” do baptismo dado aos escravos, o “não há livre nem servo”…

Até cometi a imprudência, dando dois ou três exemplos, de falar da condição feminina na Bíblia… E o que para mim era génese da libertação da condição da mulher (que, segundo a Bíblia, tinha sido criada a partir do homem e não a partir de um material secundário como noutros mitos; que eram discípulas de Jesus – outros profetas não as admitiam –, que recebiam o baptismo…), passou a ser sinal do retrocesso da Bíblia e da Igreja. Mas a fé (a Bíblia, a Igreja, Deus, o ser humano, o sentido) é uma conversa eterna e não perdi a vontade de conversar. Nem de escrever.

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