A ética tem de estar na economia, porque, como disse Bento Domingues, ecoando a polémica evangélica sobre o Sábado (“Público”, 29-09-08), “a pergunta que importa fazer tem dois mil anos: o ser humano é para a economia ou a economia para o ser humano?”
Não há actividade humana que não tenha dimensão ética. Pio XI di-lo por estas palavras na “Quadragesimo anno” (QA): “Ainda que a economia e a moral se regulem, cada uma no seu âmbito, por princípios próprios, é erro julgar a ordem económica e a moral tão afastadas e alheias entre si que de modo nenhum aquela dependa desta” (QA 42). E reforça uma ideia que vinha fazendo o caminho e que será a grande herança da QA: “justiça social”.
Com Pio XI, a doutrina social da Igreja deixa a “questão operária”, mais restrita, para estender-se à “questão social”, isto é, ao conjunto da sociedade. O Papa que instituiu a Solenidade de Cristo-Rei, que impulsionou a Acção Católica, que criou o Dia Mundial das Missões desejava uma “restauração da ordem social e seu aperfeiçoamento segundo a lei evangélica”.
“Justiça social”, desde Pio XI (usa a expressão dez vezes na QA), passou a ter um uso “sloganizado” e, a maior parte das vezes, confuso. Michael Novak, em “A Ética Católica e o Espírito do Capitalismo”, dedica-lhe todo um capítulo e diz que não é fácil salvar a expressão do uso ideológico que lhe tem sido dado. A expressão “justiça social”, útil para a propaganda, é de difícil precisão, ao contrário da justiça «clássica» (legal, comutativa, distributiva…), entendida como virtude pessoal. Quem é o sujeito justiça social? O Estado? As comunidades? Em favor de quem? Se “justiça social” consistir em alargar o papel do Estado, cai-se numa forma de comunismo. Ora, diz Pio XI, “ninguém poder ser ao mesmo tempo bom católico e verdadeiro socialista” (QA 120; neste contexto, não se trata de socialismo democrático, mas da corrente ideológica anti-religiosa, abolidora da propriedade privada e de moralidade anticristã, cf. QA 111ss). Escreve M. Novak, apoiando-se noutros teólogos: “A prática da justiça social significa activismo; significa organização; significa tentar melhorar o sistema. Não significa, necessariamente, alargar o Estado; pelo contrário, significa alargar a sociedade civil”. O autor norte-americano considera que o conceito só pode ser bem entendido quando se estabelecem relações com outros âmbitos como a sociedade civil (enquanto domínio mais rico e variado do que o Estado), os três sistemas de liberdade (política, económica e moral-cultural) ou a promoção do bem comum (que é o conjunto de condições que permite cada pessoa realizar-se enquanto pessoa).
A sustentar esta ideia de “justiça social”, que deve percorrer a sociedade de baixo até cima, do simples cidadão à mais alta esfera do Estado, está o princípio da subsidiariedade – outra das grandes ideias desta encíclica. Escreve o Papa: “Permanece imutável aquele solene princípio da filosofia social: assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efectuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à colectividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua acção é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los”. Por outras palavras, subsidiariedade é, por um lado, não esperar que os outros façam (“o Estado…”) o que cada um pode fazer, mas, por outro, a obrigação de os mais fortes virem em auxílio (subsídio) dos mais fracos quando estes precisam.
Em resumo, a QA deixa-nos dois imperativos: Justiça social como meta do agir dos cidadãos e das instituições (e, no caso cristão, é ainda consequência da caridade social); Subsidiariedade como caminho de pessoas livres e participativas.