Li a “Ler” (n.º 82, de Julho de 2009) de uma ponta à outra. Ao princípio, comecei a lê-la só pelos artigos que me interessavam, um aqui, outro ali, uma crónica, uma entrevista, duas recensões… Mas a certa altura surgiu a questão: Se de vez em quando surgem referências à religião, por que não empreender uma busca exaustiva do fenómeno religioso e tentar encontrar uma tónica dominante nas referências? Haverá um uso típico da religião na revista “Ler”?
Como o tempo é um bem raro, demorei dois fins-de-semana na primeira metade de Julho a ler a “Ler” toda. Usei pequenos intervalos, cafés, esperas de alguém, intervalos noutras tarefas…
Eis as referências religiosas católico-cristãs explícitas que encontrei. Muitas outras há como a fé de Ray Bradbury nas biliotecas (“Foram as bibliotecas que me educaram. Acredito nas bibliotecas”), só para dar um exemplo. Mas essas não contam (entre parênteses, o número da página):
* Paulo Lopes reconstitui o que sentiam os portugueses em mares desconhecidos na época dos Descobrimentos. O texto é de José Riço Direitinho: “Gradualmente dá-se uma «transformação estruturante», em que o medo continua a ter uma presença importante, mas transfigurado num elemento «imbuído de carácter cristão» (não o dos primeiros séculos, o de santo Agostinho ou de Isidoro de Sevilha) acompanhado por novas soluções. Cria-se um conjunto de práticas com o «principal objectivo de cristianizar o mar anulando os seus elementos negativos e malignos», rituais propiciatórios que acontecem a bordo e em terra” (11).
* Pedro Mexia escreve no seu espaço “Biblioteca Fútil” sobre “O Segredo de Fátima”. Invoca as referências mariana para falar de um romance de Fátima Lopes. “O terceiro romance (e não o terceiro segredo) de Fátima chama-se A Viagem de Luz e Quim” (A Esfera dos Livros). Suponho que é a primeira aparição de “Quim” em títulos portugueses (…)”. Conclui deste modo, depois de perorar sobre o sucesso dos romances das apresentadoras de TV: “E há alguns, como Fátima, que descobriram o segredo” (19).
* Junot Díaz diz numa entrevista que ao ler um poema de Walcott pensou: “Meu Deus, isto é verdade”. Junot Díaz escreveu “Vida de Oscar Wao”, na Porto Editora (24).
* Francisco José Viegas (FJV) diz que Pedro Adão e Silva cita a Bíblia em “O Sal na Terra”, um livro sobre surf na Bertrand Editora (27). A propósito da nova edição da biografia de Eça de Queirós, de Maria Filomena Mónica (Quetzal), escreve: “Acho que ainda hoje me ressinto de ter lido O Crime do Padre Amaro no Inverno, suspeitando que Leiria viva debaixo de chuvas eternas e de um céu cinzento triste e enfadonho” (28). Revisitando o Dicionário de Khazar, de Milorad Pavic, FJV, a propósito de “livros sobre livros (e de livros sobre livros que falam de livros)”, refere a história - Pavic leu Borges, diz FJV – da queima da edição de Daubmannus, pela Inquisição, em 1692, restando apenas um exemplar envenenado. “O leitor morria, efectivamente, na nona página, ao ler as seguintes palavras: Verbum caro factum est (o verbo se fez carne)”, escreve FJV.
* Na secção “Livros no top” aparecem estes pelo menos no título relacionados com o tema em questão: Comer, Rezar, Amar, de Elizabeth Gilbert (Objectiva); Original Sin, de Tasmina Perry (Harper Collins); Pegadas na Areia, de Margaret F. Powers [Estrela Polar]. O resumo diz que “a história por detrás do poema de Fishback, escrito em 1964, é uma espécie de «renovação espiritual»”. Constata-se, ainda que o livro do Bispo do Porto, D. Manuel Clemente, 1810-1910-2010 – Datas e Desafios está no top da Lello, no Porto (30 e 31).
* Na entrevista a Vasco Pulido Valente, abundam as referências cristãs. Vejamos: 1) VPV diz que se interessa pelas origens do cristianismo e que lê a Bíblia. O estudo das origens do cristianismo implica conhecimentos “de História, da doutrina e teologia cristã e um certo conhecimento do Império Romano”; 2) na adolescência VPV lia Mauriac e Bernanos (dois católicos franceses); 3) diz que Eça, “a meio da vida, escreveu dois romances religiosos que indicam que teve um grave problema religioso. O Mandarim e A Relíquia são, em última análise, uma declaração de ateísmo”; 4) sobre o talento literário, VPV diz: “As pessoas escrevem o que podem mas o valor daquilo que escrevem não depende da opinião das pessoas que compram os livros: Senão, o maior romancista do mundo era aquele rapaz – como é que ele se chama? – que escreveu a filha de Cristo…” [Dan Brown – diz Carlos Vaz Marques, que conduz a entrevista]; 5) diz que escrevia o que lhe vinha à cabeça no tempo de O Tempo e o Modo [a revista liderada por católicos progressistas] (32-43).
* “O padre Jovito Soares, um dos elementos da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação, um sobrevivente que não tem piedade da sua própria dor, explicou-me que «não podemos contar com esta geração. Os que morreram, morreram como animais, não morreram como homens. É apenas o futuro que pode restituir-lhes dignidade», escreve Pedro Rosa Mendes, regressado de Timor (53).
* Rogério Casanova diz, ultrapassados uns diálogos inconsequentes e uma longa viagem de autocarro, que chegará ao País de Gales, mais concretamente a Tupperware e a um dos maiores festivais literários do mundo, “se Deus e a Rainha assim o permitirem” (57).
* António Manuel Baptista escreve sobre o livro de José Jorge Letria que se chama O Que Darwin Escreveu a Deus e Outras Cartas Que Nunca Chegaram ao Seu Destino (Oficina do Livro). Neste livro, Cristo escreve a Maomé e o autor, no final, a Deus (sendo cartas que não chegam ao destino, deduzo que o autor escreve como não crente, ou como desejando ser crente) (61).
* 1866 foi o ano da inauguração do Seminário-Liceu de S. Nicolau, diz Francisco Benard, a propósito da colectânea O Ano Mágico de 2006 – Olhares Retrospectivos sobre a História e a Cultura Caboverdianas (Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2008) (63).
* “O ódio ao nazismo e ao catolicismo acompanhá-lo-á durante toda a vida, chegando a escrever que «ambos são doenças do espírito, nada mais»”, escreve José Riço Direitinho a propósito Thomas Bernhard, que só “por dinheiro” aguentava a “humilhação vergonhosa” das entregas de prémios (64).
* Há um jesuíta chamado Naptha (“arrivista e medievalista”) em A Montanha Mágica, de Thomas Mann (Dom Quixote) (67).
* O novo livro de Mia Couto chama-se Jesusalém (Caminho). Impossível não associar a Jerusalém. E lê-se como “Jesus além” – pelo menos assim lê Mia Couto, vi na TV (67).
* O novo livro de Nuno Júdice chama-se Os Passos da Cruz (D. Quixote) – a história de um escritor que investiga a história de Antónia Margarida, que se torna noviça no Convento da Madre de Deus, em Lisboa, e de Brás Teles, que acabou também num convento, no séc. XVII, diz Carlos Câmara Leme (73).
* Em A Potência de existir – Manifesto Hedonista (Campo da Comunicação), Michel Onfray (diversas vezes citado neste blogue) retoma temas que lhe são caros, como “a sexualidade liberta da ganga judaico-cristã e burguesa” e o “ateísmo pós-cristão” (77).
* De Laura Ferreira dos Santos, que se tem apresentado como católica, é referido o livro “Ajudas-me a morrer?” (Sextante) (80).
* Eduardo Lourenço no ensaio “Esquerda, para onde vais tu?” fala de “pecados políticos”, lembra João XXIII para dizer como ele disse da Igreja que “a esquerda não tem inimigos”, diz que não se espera que “salvemos o mundo que parece ninguém estar em condições de salvar” (82-83).
* Valter Hugo Mãe, que diz que não faz sentido assinar com maiúsculas já que escreve só com minúsculas (é lá com ele), diz: “Nunca esperei ser romancista, queria antes ser poeta porque os poetas convivem com o insondável, ou sejam, com Deus” (84).
* Finalmente, Pedro Adão e Silva (o do livro do surf) diz na secção “Ponto Final” que a política portuguesa, “mais do que de férias, precisa é de um retiro espiritual”. Na literatura portuguesa, quem destaca o professor universitário e surfista? “Estamos fadados a ser um país de poetas, logo, o José Tolentino Mendonça” (96).
Falta uma taxonomia destas referências. O cristianismo católico é abordado nos seus aspectos históricos, como referência cultural, como origem de metáforas, comparações e paródias, como objecto de reflexão (neste caso, a combater), quase nunca como convicção pessoal. Porém, as questões introdutórias deste elenco continuam por responder. Haverá um uso cultural (literário, intelectual) típico das referências católicas?