1. No passado domingo, referi alguns dos movimentos que,
durante a primeira metade do século XX, não aceitaram um destino previsível: a
uma religião exterior ao tecer do mundo, sucederia um mundo fechado a qualquer
transcendência.
Esses movimentos recusaram as alianças da Igreja com os
poderes de dominação que a divorciavam de Cristo, dos pobres, do mundo operário
e dos novos percursos culturais de surpreendentes e estranhas linguagens
filosóficas, científicas, poéticas, musicais, artísticas. Eles desejavam-na
mais leve, mais disponível, sem fixações doutrinais ou rituais que a impedissem
de caminhar no interior misterioso de Deus e do mundo. Para ser fiel à sua
condição de peregrina do Absoluto, bastavam-lhe provisórios recursos de viagem.
Com erros e acertos, procuravam que a Igreja fosse vivida e
entendida, na diversidade de carismas e serviços do povo cristão, como voz de
Cristo num mundo dilacerado por duas terríveis guerras mundiais. A repressão
exercida sobre as expressões dos mais audazes criou uma atmosfera irrespirável,
em vários sectores católicos. Perdia-se a esperança de que ela se tornasse um
espaço de liberdade. Temos muitas narrativas dessa situação.
2. João XXIII, com os olhos postos nesse mundo em
transformação, apostou no aggiornamento da Igreja. Este termo, usado para
expressar uma das intenções fundamentais do Vaticano II, é muito mais do que
uma operação de marketing ou um truque, como se este Papa procurasse uma imagem
modernaça para um catolicismo envelhecido. Entretanto, já circulava outra
expressão de sinal oposto, "voltar às fontes". Acabaram ambas
conjugadas com os enigmáticos "sinais dos tempos". A aproximação
destas metáforas é um bom caminho para perceber a importância incontornável da
iniciativa deste Concílio, sem cair na sua sacralização.
Quando se proclama o texto do Evangelho, na Eucaristia,
começa-se sempre por dizer "naquele tempo", como se fosse necessário
manter a comunidade cristã colada ao passado. Se isso fosse verdade, o
Evangelho seria uma boa notícia, não para nós, mas para "aquele
tempo". O paradoxo desta linguagem não é inocente nem passadista. Mantém o
contraste de uma tensão essencial ao tempo cristão da fé.
Por um lado, não temos de resolver os problemas do primeiro
século da era cristã, sejam de ordem teológica, religiosa ou social, como certa
investigação exegética poderia sugerir. Pelas pessoas de há dois mil anos, a
única coisa que poderíamos fazer seria rezar pelo seu eterno descanso. O
passado não é o objecto da evangelização.
Se a Eucaristia exige a sua proclamação é, precisamente,
porque o considera a melhor notícia para as pessoas do mundo de hoje. Com uma
condição incontornável: que seja a partir dos problemas concretos das
comunidades de hoje, nas linguagens que reconheçam as suas interrogações mais
profundas e urgentes. A Eucaristia é de vivos e para vivos e só tem sentido se
Cristo está actuante e pode vivificar a fé, a esperança e o amor da comunidade.
Então porque continuar a repetir e a insistir em dizer
sempre "naquele tempo"?
O cristianismo nasceu não nas nuvens do mito, mas na
história. O Verbo de Deus fez-se fragilidade humana. É nessa fonte, sempre
fecunda, que precisamos hoje de beber. É nessa fonte que beberam todas as
pessoas que, ao longo dos séculos, consentiram em deixar transformar a sua vida
e trabalharam na transformação do seu tempo. Esta é a tradição viva, muito
diferente de um museu da santidade.
3. Não podemos deixar de nos congratular com muitas
iniciativas e publicações para celebrar, estudar e avaliar a herança do
Concílio Vaticano II. Esperemos que não seja para o arrumar de vez.
Dir-se-á que ainda não há distância suficiente para
interrogar e avaliar o período pós-conciliar que, segundo alguns observadores,
misturou a Primavera com o Inverno, de que falava Karl Rahner. Mais delicada
ainda será a apreciação das medidas da Congregação da Doutrina da Fé que
atingiram os mais inovadores teólogos e movimentos teológicos e pastorais, nos
diversos continentes, sobretudo nas décadas de oitenta e noventa, medidas que,
aliás, ainda não estão cansadas.
A distância, em temos históricos, é de facto curta. A Igreja
dispõe de academias para avaliações históricas de carácter científico. Mas a
vida e as instituições da Igreja não se situam todas a nível académico.
Diante dos gravíssimos problemas actuais da sociedade e da
Igreja, nota-se um tal retraimento e timidez, que é legítimo perguntar: não
estarão as comunidades cristãs a serem vítimas de um longo período no qual a
sua voz não contou para nada? Quando, agora, nos interrogamos sobre a sua falta
de empenhamento militante, talvez esqueçamos uma resposta antiga: ninguém nos
convocou, ninguém quis ouvir a nossa voz, compartilhar as nossas dúvidas e
interrogações, tomar a sério a nossa situação pouco canónica e pouco alinhada
com a opinião dominante. Deixaram-nos em autogestão...
A preocupação do Ano da Fé talvez não seja para aqueles que
só procuram paz e sossego.
A fé cristã não é um calmante. É a certeza de que sem obras
está morta (Tiago, 2-4).
1 comentário:
Gosto em particular da parte em que frei Bento se insurge (!?!) por se referir nas leituras do Evangelho a "Naquele tempo"... não é frei Bento quem vive apenas "naquele tempo" (no do pós- Concílio em que se quis fazer deste tudo menos o que ele foi)?...
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