quinta-feira, 9 de junho de 2011

"Cristo é um refugiado que se afoga no Mediterrâneo"



Em Portugal quase não se falou do assunto. Ou pelo menos não teve grande eco nas consciências. É a lei da proximidade. Longe não incomoda. Em Itália, falou-se, mas a persistência das tragédias cria insensibilidade. O escritor Claudio Magris retomou o assunto, provocando o debate:
Em alguns jornais, 200 mortos ou desaparecidos no mar como os de anteontem, em uma fuga do desespero, não acabam nem mais mais na primeira página; deslizam para as seguintes, entre as notícias certamente relevantes, mas não clamorosas. Para catástrofes semelhantes, poucos anos atrás, até um primeiro-ministro se comovia ou pelo menos sentia o dever de se comover publicamente. 
As tragédias de hoje dos refugiados em busca de salvação ou de uma sobrevivência menos miserável que perecem, muitas vezes anônimos e desconhecidos, no mar não são menos dolorosas, mas não são mais uma exceção, embora frequente, mas sim uma regra. 
Tornam-se, portanto, uma crônica costumeira, da qual já estamos calejados, que quase já se espera antes de abrir o jornal e que, portanto, não escandaliza e não perturba mais, não provoca mais emoções coletivas. Essa habituação que leva à indiferença certamente é inquietante e aumenta a distância intransponível entre quem sofre ou morre, naquele momento sempre sozinho, como os fugitivos engolidos pelos redemoinhos, e os outros, todos ou quase todos os outros, que, para continuar vivendo, não podem ser muito absorvidos por aqueles remoinhos que arrastaram fundo. 
É justo mas também é fácil nos acusarmos dessa insensibilidade, que se refere também a mim mesmo enquanto estou escrevendo estas linhas e todos ou quase todos que eventualmente as lerão. Ao contrário de outros casos, em que a indiferença ou a lívida hostilidade se reforçam contra o estrangeiro, o miserável, contra quem é etnicamente ou socialmente diferente, nessa circunstância a nossa insensibilidade não nasce da proveniência e da identidade a nós hostil daqueles afogados. Nasce da repetição desses dramas e do inevitável costume que deles deriva. 
Mesmo que, por circunstâncias adversas, todos os dias os jornais tivessem que reportar notícia de soldados italianos mortos no Afeganistão, a reação, depois de um certo tempo, se tingiria de um hábito cansado. Mesmo crimes atrozes da máfia são, pouco a pouco, vividos como um hábito. 
Não podemos sobreviver emocionando-nos com todas as desventuras que atingem os nossos irmãos no mundo; mesmo a comoção por qualquer delito particularmente macabro, por exemplo o brutal assassinato de uma criança, depois de um certo tempo, horrivelmente se aplaca; a notícia foi absorvida, não agita mais a ordem do mundo nem o coração. 
A habituação – às drogas, à guerra, à violência – é a rainha do mundo. "É preciso, no entanto, viver – diz-se  em um romance de Bernanos – e esta é a coisa mais horrível". Talvez uma das maiores misérias da condição humana consiste no fato de que até o cúmulo de dores e desgraças, além de um certo limiar, não incomoda mais. Se eu anuncio a morte de um parente, encontro uma compreensão contrita, mas se logo depois anuncio uma outro e depois outra corro o risco até do ridículo. 
Justamente por isso – porque, diferentemente de Cristo, não podemos verdadeiramente sofrer por todos, assim como não nos entristece a leitura dos obituários nos jornais –, não podemos confiar-nos apenas ao sentimento parar sermos próximos dos outros. O nosso sentimento, compreensivelmente, nos faz chorar por um amigo que amamos e não por um desconhecido, mas devemos saber – não abstratamente, mas realmente, com a compreensão de toda a nossa pessoa – que homens por nós nunca vistos e não concretamente amados também são reais. 
Aqui reside a diferença entre o pensamento reacionário e a democracia. O reacionário facilmente zomba da humanidade abstrata e do abstrato amor ideológico pelo gênero humano, porque sabe amar o seu próprio colega de escola, mas não sabe verdadeiramente entender que os colegas de pessoas de pessoas a ele desconhecidas também são reais; não abstrações, mas carne e sangue. 
A democracia – ridicularizada como fria e ideológica –, ao contrário, é concretamente poética, porque sabe se colocar na pele dos outros, como Tolstoi na de Anna Karenina, e, portanto, também na dos náufragos no fundo do mar.
A propósito, o teólogo leigo Christian Albini lembra palavras de Thomas Merton e sublinha o desconforto que deve provocar nos cristãos, nos que ainda são sensíveis, a morte de africanos no Mediterrâneo.
 "De que serve organizar cursos de doutrina do Corpo Místico e de sagrada liturgia, se não se tem nenhum interesse pelo sofrimento, pela miséria, pela doença e pela morte prematura de milhões de membros potenciais em Cristo?" (Thomas Merton, Vita e Santità, Ed. Lindau, p. 100). 
É a diferença entre a religião da forma, das palavras, do conformismo e a fé que nasce da escuta de uma Palavra que converte a minha vida, que rompe a casca da minha autossuficiência e me faz reconhecer que não sou nada sem o outro que me ama e que eu amo. 
Quando escrevi há alguns dias que a tarefa dos cristãos na política é elaborar uma gramática do bem comum, queria dizer um retorno ao humano, ao reconhecimento da humanidade de todo o tipo e à sua proteção, sem fechamentos e particularismos tribais. 
(…) Para nós, italianos, Cristo é um refugiado que se afoga no Mediterrâneo. É essa convergência no amor que pode se tornar uma verdadeira lei universal. 
Dito novamente com a sabedoria rabínica: "Como tu podes dizer que me amas se não sabes o que pode me ferir?". É a partir do sofrimento pelas feridas dos outros que começa o caminho do amor.
Texto de Claudio Magris aqui.
Texto de Christian Albini aqui.

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