Anselmo Borges no DN de hoje (aqui):
Pode discutir-se, mas é sugestiva, a comparação feita pelo célebre filósofo E. Levinas entre Ulisses e Abraão como figuras paradigmáticas da relação com o outro.
Ulisses, depois da Guerra de Tróia, de volta a casa, vive a aventura de encontros múltiplos com outros, experiências variadas. Travou combates, enfrentou obstáculos sem fim, conheceu o diferente. Coberto de vitórias e glória, regressa. Mas, chegado a casa, mesmo disfarçado, "diferente" do Ulisses que partira, é ainda o "mesmo", que o seu cão, pelo faro, e Penélope, pelo amor, reconhecem. Ulisses representa o herói do regresso, que contactou com o diferente apenas para, num mundo domesticado e assimilado, o reduzir ao mesmo.
Abraão ouviu uma voz que o chamava, e partiu da sua terra, para nunca mais voltar. A sua viagem vai na direcção do novo, do não familiar, do diferente, do Outro. Ninguém o espera num regresso ao ponto de partida. Há só uma palavra de promessa que o chama para um futuro sempre mais adiante. Abraão ouve, caminha, transcende. A sua identidade transfigura-se a cada passo, é processual, histórica. Rompe com o passado, e o seu êxodo vai no sentido de um futuro imprevisível e novo.
A identidade não é estática, fixa, determinada de uma vez para sempre. Claro que cada um, cada uma é ele, ela, de modo único e intransferível - a experiência suma desse viver-se cada um como único e irrepetível dá-se frente à morte, na angústia do confronto com a possibilidade do nada e da aniquilação do eu: "ai que me roubam o meu eu!", clamava Unamuno -, mas fazemo-nos uns aos outros, de tal modo que ser e ser em relação coincidem. Por isso, a identidade faz-se, desfaz-se, refaz-se e, em sociedades complexas e abertas, ela será cada vez mais compósita e planetária, com tudo o que isso significa de enriquecimento e ao mesmo tempo de complexidades e possíveis rupturas.
É, portanto, preciso pensar a unidade na diferença e a diferença na unidade. A unidade sem diferença é a mesmidade morta, mas a diferença sem unidade é o caos sem sentido. O mesmo se deve dizer da identidade: ser si mesmo na relação, mas sem se deixar absorver pelo outro.
Descartes acentuou o primado da subjectividade, do eu, contrapondo-lhe Levinas, em antítese, o primado da alteridade, do tu. Mas, afinal, se não se pode prescindir da alteridade, caindo no perigo do solipsismo, também é necessário evitar a tentação daquela afirmação do outro que parece prescindir do eu, caindo numa espécie de alterismo. Como escreveu M. Moreno Villa, a verdade não se encontra nem no solipsismo nem no alterismo, mas na subjectividade e na alteridade, "afirmadas ambas simultaneamente no círculo ontológico interpessoal".
Há várias imagens para esta afirmação simultânea da identidade e da diferença. Por exemplo, na música - o famoso compositor e dirigente de orquestra Daniel Barenboim apresenta precisamente a música como a grande imagem do que deve ser o diálogo intercultural -, há múltiplos instrumentos (de corda, de percussão, de sopro, podendo a orquestra ser ainda acompanhada por um coro de vozes) - e, de todos juntos, até em contraponto, resulta uma sinfonia: a unidade de diferentes. Num tecido, há múltiplos fios, que se entretecem de diferentes modos, configurando uma unidade. Numa rede - e cada vez mais é preciso pensar em rede -, há múltiplos nós. Ora, os nós, que significam a identidade própria, só existem precisamente na rede, de tal modo que não há rede sem os nós nem os nós sem a rede.
Num mundo global cada vez mais multicultural e multirreligioso, é urgente repensar a identidade sempre a caminho, no quadro de múltiplas pertenças, e, para lá do multiculturalismo e do multirreligioso, que sublinham o "multi", avançar para o diálogo intercultural e inter-religioso, sublinhando o prefixo "inter", que implica um caminho de interacções múltiplas, sendo a identidade mais uma meta do que um ponto de partida, num horizonte que sempre se desloca na medida em que se marcha para ele. O seu símbolo é mais Abraão do que Ulisses.
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