"Aquando de uma viagem à Austrália, fiquei particularmente sensibilizado com a experiência de vida dos aborígenes, não aqueles, hoje praticamente dizimados pelo álcool e pela civilização, mas os que viveram nessas terras antes dos ocidentais aí desembarcarem. Ora, o que faziam eles? No imenso deserto australiano, nómadas como eram, prosseguiam a sua exploração avançando sempre em círculos. Ao cair da noite, capturavam um lagarto, uma serpente, de que faziam a sua refeição e de manhã voltavam a partir. Se, em lugar de avançar em círculo, tivessem prosseguido em linha recta, teriam chegado ao mar onde os aguardava um festim. Em todos os casos, hoje como ontem, a sua arte é feita de círculos que nos evocam uma espécie de pintura abstracta, aliás bastante bela. Um dia, durante essa viagem, chegámos a uma reserva onde havia uma igreja cristã como o seu sacerdote. Este mostra-nos um grande mosaico ao fundo do edifício, onde naturalmente apenas se vêem círculos. O sacerdote diz-nos que esses círculos, segundo os aborígenes, representam a Paixão de Cristo, embora não saiba explicar porquê. O meu filho, então adolescente e sem grande educação religiosa, apercebe-se de que os círculos são em número da catorze. Trata-se, evidentemente, das catorze estações da Via Crucis.
Para eles, o caminho da cruz era representado como um tipo de movimento perpétuo e circular, pontuado por catorze estações. Assim, não podiam desligar-se dos seus próprios motivos, do seu imaginário".
Umberto Eco, pág. 101 de “A Obsessão do Fogo", de Umberto Eco e Jean-Claude Carrière (Difel).
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