As encíclicas sociais de João XXIII (a “Mater et Magistra” e a “Pacem in Terris”) fazem parte de uma segunda geração do pensamento eclesial sobre as questões sociais. A doutrina social da Igreja (DSI) alarga-se em dois sentidos. Sai do campo estrito das questões relativas ao trabalho (direitos e deveres de patrões e trabalhadores, sindicatos, salário justo, etc.) e da oposição entre sistemas e doutrinas (socialismos/capitalismo e cristianismo) para abraçar as questões dos direitos humanos, do desenvolvimento, das desigualdades. No sentido geográfico, é o mundo todo que passa a destinatário da DSI. Não é que antes o não fosse, mas os efeitos da revolução industrial apenas se sentiam na Europa e na América do Norte.
Na década do início das comunicações globais, das viagens intercontinentais de avião a jacto, da maior parte das independências nacionais no Terceiro Mundo, da proliferação nuclear que todos ameaça, a “Pacem in Terris” é a primeira encíclica da globalização.
Vejamos três dos temas principais.
1. O primeiro é o dos direitos humanos (DH), vistos na dupla perspectiva dos direitos e deveres (algo que a Declaração Universal de 1948 não faz claramente). O Papa entende os DH não como consequência da ideia de tolerância (que parece ser hoje o grande modo de entender a vida social), mas alicerçados na dignidade que tem raiz “na lei natural que os confere ou os impõe”. “Ao direito de todos à existência, por exemplo, corresponde o dever de conservar a vida; ao direito a um nível de vida digno, o dever de viver dignamente; e ao direito à liberdade na busca da verdade, o dever de a procurar todos os dias mais ampla e profundamente” (PT 29). Hoje, mais do que nunca, é preciso falar dos deveres humanos – ainda que não seja simpático.
2. O segundo é a crescente interdependência das nações, em muitos aspectos, ao ponto de se falar de um “bem comum universal”, o “bem comum de toda a família humana”. “Cresce a interdependência entre as economias nacionais. Estas entrosam-se gradualmente umas nas outras, quase como partes integrantes de uma única economia mundial” (PT 130), escreve o Papa em 1963. “É claro de ver que cada Estado não pode atender como convém ao seu próprio proveito (…) isolado dos doutros, porque a crescente prosperidade de um Estado é, em parte, efeito e, em parte, causa da crescente prosperidade de todos os outros” (PT 131). Talvez na década de 1960 (a ONU tinha 15 anos) se pensasse que um governo mundial estivesse próximo.
3. Terceira ideia entre as muitas abordadas (desarmamento, refugiados, minorias, colaboração entre católicos e não-católicos): a gradualidade na acção social. “Não faltam pessoas dotadas de particular generosidade que, ao enfrentar situações pouco ou nada conformes com as exigências da justiça, se sentem arder no desejo de tudo renovar, deixando-se arrebatar por ímpeto tal, que até parecem propender para uma espécie de revolução” (PT 161). Hoje, perante a persistência dos problemas sociais (pensemos que em Portugal, ao longo de duas décadas o número de pobres manteve-se nos dois milhões), este princípio tem de ser lembrado precisamente pela razão oposta. É possível mudar.