quarta-feira, 21 de abril de 2010

Por Ele marcharam os passos dos legionários

Um extraordinário poema, aqui numa versão incompleta, encontrado no meio de um texto sobre a globalização. Para quem tem uma visão cristã do mundo.

Por Ele marcharam os passos dos legionários,
As velas dos barcos por Ele se tinham estendido
Por ele os grandes barcos de Outono tinham luzido,
Por ele se dobraram as velas nos estuários.
(…)
Os passos de Dário tinham marchado por Ele,
Era por Ele que esperavam no fundo da Pérsia,
Era por Ele que esperavam numa alma dispersa,
Ele é o Senhor de ontem e de hoje.
E os passos de Alexandre por Ele tinham marchado
Do palácio paternal às margens do Eufrates.
E por Ele o último sol tinha luzido
Sobre a morte de Aristóteles e a morte de Sócrates.
(…)
As regras de Aristóteles tinham marchado por Ele
Do cavalo de Alexandre às épocas escolásticas.
E o ascetismo e a regra luziram por Ele
Das regras de Epicuro até às regras monásticas.


Charles Péguy. Excerto de “A Tapeçaria de Eva” (1913)

"Os atletas da contrição", por Fernando Gabriel

Uma reflexão estimulante sobre contrição, pecado, perdão e uma forma de masoquismo na Europa. De Fernando Gabriel, no "Diário Económico" de hoje (21-04-2010).

21 de Abril de 1142. Morre Pedro Abelardo

Pedro Abelardo (1079-1142), nascido Pierre le Pallet, foi um professor inovador, analisando os pontos de vista diferentes sobre uma mesma questão. Este tipo de método esteve na origem da escolástica e das sumas. Aparece na sua obra “Sim e não” (“Sic et Non”).

Em Paris, foi professor de Heloísa, sobrinha de um cónego de Notre Dame, e apaixonou-se pela aluna. Casaram-se. Como o casamento punha em causa a carreira académica – reservada a celibatários –, houve uma série de mal-entendidos que acabam com a castração de Abelardo. Por insistência deste, Heloísa torna-se feira e Abelardo monge beneditino. Em 1132, Abelardo escreve a obra “História das minhas calamidades” (“Histaria calamitatum mearum”), contando alguns pormenores da sua vida até à altura. Mesmo cada um seguindo a sua vida, continuaram a corresponder-se. As cartas são símbolo do amor romântico e revelam dois grandes intelectos – e o egoísmo de Abelardo.

Abelardo chegou a estudar com Anselmo de Cantuária (que também morreu num 21 de Abril, mas em 1109) e teve como grande opositor, no final da vida, Bernardo de Claraval, que fez condenar o ensino de Abelardo no Concílio de Sens, em 1141. Não foi a primeira vez, visto que Abelardo já tinha sido condenado no Concílio de Soissons, em 1121.

Na questão dos universais, Abelardo tinha uma posição intermédia entre os essencialistas e os nominalistas: os universais não são coisas, mas falar em universais não é falar de meras palavras - teoria do conceitualismo.

Já sobre a ética, escreveu que o mesmo acto pode ser executado pelo mesmo homem em diferentes momentos e, de acordo com a diferença da sua intenção, o acto pode ser uma vez bom e outra vez mau - a intenção como constituinte fundamental da moralidade.

Abelardo morre em 1142 e Heloísa em 1164. Em 1817 os restos mortais de ambos foram trasladados para um único túmulo no cemitério de Père Lachaise, em Paris.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Onde pôr os pés?

Possa Deus dar-nos a fé quotidiana. Eu não penso minimamente na fé que foge do mundo, mas naquela que o experimenta, o ama e que lhe permanece fiel, a despeito de todos os sofrimentos que ele contém por nós. Eu temo que os cristãos que só têm um pé na Terra, também não tenham mais do que um pé no céu.

Dietrich Bonhoeffer (1905-1945)

O verbo no infinito

Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer de tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito...

Vinicius de Moraes (1913-1980)

Pedro Lomba: "Laico dos laicos"

No "Público" de hoje.

Jaime Nogueira Pinto: "Os silêncios de Deus"

Jaime Nogueira Pinto no i de hoje.

20 de Abril de 1233. Gregório IX publica a bula “Licet ad capiendos”, que institui a Inquisição


Gregório IX, pintura de Rafael na Stanza della Segnatura, no Vaticano
Sob o termo Inquisição cabe muita coisa: os tribunais medievais do sul de França, contra os cátaros (séc. XII); a inquisição estatal de Aragão; a inquisição espanhola (1478-1821), controlada pela monarquia; a portuguesa (1536-1821) aproveitada pelo Estado; e a romana (1542-1965), dependente da Santa Sé, instituída nas vésperas do Concílio de Trento e por ele reforçada.
Mas de alguma forma se pode dizer que foi papalmente instituída no dia 20 de Abril de 1233. O papa Gregório IX, o mesmo que canonizou S. Francisco. D. Domingos e S.to António, publicou a bula “Licet ad capiendos", com a finalidade de reprimir a heresia, atribuindo tal missão aos dominicanos.
"Onde quer que lhes [hereges] ocorra pregar, estais facultados, se os pecadores persistirem em defender a heresia apesar das advertências, a privá-los para sempre dos seus benefícios espirituais e a proceder contra eles e todos os outros, sem apelação, solicitando em caso necessário a ajuda das autoridades seculares e vencendo sua oposição, se isto for necessário, por meio de censuras eclesiásticas inapeláveis".

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Teologia infantil sobre a impecabilidade de Jesus

Jesus não pecou. Ensina-se na catequese. Mas há dias, depois de as catequistas terem apresentado o nazareno como modelo moral, uma criança descobriu por que é que Jesus não pecou: “Jesus não pecou porque tinha uns pais santos. Se ele tivesse os meus, queria ver…”

O grande pensador está ofuscado pelas crises que atingem o Vaticano

Na edição impressa do "Público" de ontem. Também pode ser lido aqui e aqui, pelo menos enquanto o acesso for livre.


António Ribeiro Ferreira: "As vozes dos burros"

Gravura sobre o massacre de há 504 anos

Gravura reproduzida no blogue Rua da Judiaria, a partir de uma cópia cedida pelo Hebrew Union College. O original encontra-se na Houghton Library, na Universidade de Harvard. Imagem e texto copiados daqui.

“Von dem Christeliche / Streyt, kürtzlich geschehe / jm. M.CCCCC.vj Jar zu Lissbona / ein haubt stat in Portigal zwischen en christen und newen chri / sten oder juden, von wegen des gecreutzigisten [sic] got.” (“Da Contenda Cristã, que Recentemente Teve Lugar em Lisboa, Capital de Portugal, Entre Cristãos e Cristãos-Novos ou Judeus, Por Causa do Deus Crucificado”)

Panfleto anónimo, com apenas seis folhas, impresso na Alemanha (presumivelmente poucos meses depois do massacre de Lisboa). O “progrom” de 1506 contra os judeus de Lisboa é descrito em detalhe e as matanças contadas ao pormenor por uma testemunha ocular. A gravura do frontispício mostra os corpos mutilados e envoltos em chamas de dois judeus portugueses, dois irmãos, os primeiros a morrer num massacre que vitimou mais de 4 mil pessoas.

19 de Abril de 1506. Início do massacre de judeus em Lisboa

Nos dias 19, 20 e 21 de Abril de 1506 terão sido massacrados em Lisboa cerca de 4000 judeus. Tudo começou porque, vivendo-se um período de seca e peste (nesse mês de Abril estavam a morrer dezenas de pessoas por dia, em Lisboa), durante uma oração na Igreja de S. Domingos, alguém clama por milagre ao ver o rosto de Cristo crucificado iluminar-se. No meio do povo há um que explica o milagre apontando para uma fresta de sol. Era um judeu convertido à força. Arrastado para a rua, foi a primeira vítima. Seguiram-se três dias sangrentos. Morreram mais judeus nestes três dias do que nos três séculos da Inquisição que daí a décadas seria instalada em Portugal.

Durante muitos anos, o episódio foi ignorado. Em 2006 a cidade de Lisboa homenageou as vítimas com um monumento no largo da Igreja de São Domingos, na Baixa de Lisboa.

domingo, 18 de abril de 2010

Fernanda Câncio e "a Igreja"

Fernanda Câncio conta na “Notícias Magazine” de hoje, “a revista mais lida em Portugal”, a relação dela “com sacerdotes e quejandos”. Não se trata de nenhum trauma com a Igreja Católica. Ele esclarece-o logo de princípio. Mas não diz que não tem nenhuma obsessão, pelo que nos resta esta hipótese para explicar a sua fixação na Igreja, a católica, como é óbvio. Ela ainda não percebeu, aos trinta ou quarenta e tais anos, que quando alguém em Portugal diz “Igreja” está a referir-se à Igreja católica, mas percebeu aos três anos de idade que um dos sacerdotes que quem lidou trocava os vês pelos bês.

Ela não tem nenhum trauma. Eu costumo ler o DN aos domingos (que inclui a Notícias Magazine, que também sai no JN), à sexta e nos outros dias, pelo que, nos dias em que ela escreve, mesmo antes de chegar à página dela, antecipo: “Contra o quê da Igreja, a católica, como é óbvio, é que ela escreve hoje?” Nem sempre acerto. Por vezes não escreve contra a Igreja e os católicos. Às vezes defende o governo. Ou escreve contra a oposição. E uma ou outra vez escreve sobre deus (sempre com minúscula), a “família tradicional” (sobre a qual conclui na NM de 4 de Abril deste ano: “Portanto, se faz favor, deixem-se de merdas”), ou sobre o que a intriga desde miúda (coisas como a palavra “sozinho”, na NM de 28 de Fevereiro), revelando a sua precocidade. Portanto, ela não tem qualquer trauma. Talvez um dia se intrigue com a palavra “obsessão”, como se intrigou com a palavra “sozinho”, e se descubra obcecada. Mas isso não é trauma. Além de escrever contra a Igreja, não é raro contar as suas iluminações. Hoje revela que decidiu aos dez anos que não queria pertencer a deus – deus com minúscula. Embora não especifique de que Deus se trata, deverá estar a falar do católico. Mais uma precocidade.

Há crentes que dão maus exemplos. Como a Igreja disse no Vaticano II, há ateísmo provocado pelo mau testemunho dos (ditos) crentes. Mas Fernanda Câncio está entre os bons ateus, aqueles que se descredibilizam a eles próprios. Fazem favores aos crentes. A sua obsessão é factor de crédito para a Igreja. Haja muitos como ela. Se fosse crente, seria fundamentalista, como é fundamentalista sendo ateia. Vale muito um ateu que pela sua obsessão se rotula e descredibiliza. Para ser ateu como ela, não. Ensina-nos, por exemplo, que não se deve acreditar em padres que trocam os vês pelos bês e que escrevem folhetos com o título “Luís, porque não hei-de beijar-te” [tem um erro; correctamente escrito deveria ser: “Luís, por que não hei-de beijar-te”].

Aprendo muito com ela. Os ateus vulgares ensinam-nos sobre aquilo em que não devemos acreditar: as vulgaridades em que também eles não acreditam. Na verdade, é um ensino inútil, porque os crentes, em princípio, já não acreditam em nada disso. Os ateus profundos questionam as nossas crenças. Mas não temos essa sorte com a Fernanda Câncio.

Bento Domingues: Contra a velhice e a morte

18 de Abril de 1506. Bramante recebe o encargo de desenhar a Basílica de São Pedro

Cúpula da Basílica de S. Pedro. A inscrição “S. PETRI GLORIAE SIXTVS PP V A MD XC PONTIF V” , quer dizer “Para Glória de São Pedro, Papa Sisto V, ano de 1590, quinto ano do seu pontificado”

No dia 18 de Abril de 1506, por ordem do Papa Júlio II (1503-1513), Bramante (1444-1514) recebe o encargo de desenhar a nova Basílica de São Pedro.

A construção receberia contributos de artistas como Miguel Ângelo, Rafael e Bernini, entre muitos outros, e atravessaria os pontificados de Leão X (1513-1521), Adriano VI (1522-1523), Clemente VII (1523-1534), Paulo III (1534-1549), Júlio III (1550-1555), Marcelo II (1555), Paulo IV (1555-1559), Pio IV (1559-1565), Pio V (santo) (1565-1572), Gregório XIII (1572-1585), Sixto V (1585-1590), Urbano VII (1590), Gregório XIV (1590-1591), Inocêncio IX (1591), Clemente VIII (1592-1605), Leão XI (1605), Paulo V (1605-1621), Gregório XV (1621-1623) e Urbano VIII (1623-1644).

Este último consagrou a Basílica no dia 18 de Novembro de 1626. Mas os trabalhos do complexo só se deram por concluídos com a construção de uma sacristia no tempo de Pio VI (1775-1799).

sábado, 17 de abril de 2010

"As pessoas com fé precisam de ter melhor educação científica"


Entrevista da "New Scientist" a Francisco Ayala vencedor do Prémio Templeton pelo seu contributo para o diálogo Ciência / Religião. Ayala (Madrid, 1934), antigo padre dominicano, biólogo e geneticista na Universidade da Califórnia, em Irvine, vive nos EUA desde 1961. Foi conselheiro do presidente Bill Clinton. Entrevista em inglês, aqui.

Foi-lhe atribuído o prémio por dizer que não há contradição entre ciência e religião. Muitos discordam.
Ciência e religião são duas janelas através das quais olhamos para o mundo. A religião lida com a relação com o nosso Criador, de uns com os outros, com o sentido e a finalidade da vida e os valores morais. A ciência lida com o surgir da matéria, a expansão das galáxias, a evolução dos organismos. Lidas com formas diferentes e conhecimento. Eu sinto que a ciência é compatível com a fé religiosa num Deus pessaol, omnipotente e bondoso.

Contudo, existem conflitos. Porquê?
A religião e a ciência não são adequadamente compreendidas por algumas pessoas, particularmente cristãos. Alguns pretendem interpretar a Bíblia como se fosse um manual. É um livro para nos ensinar verdades religiosas. Ao mesmo tempo, alguns cientistas reivindicam que sabem usar a ciência para provar que Deus não existe. A ciência não deve fazer nada desse género de coisas.

Fala do mútuo respeito entre ciência e religião. Como é que podemos apoiar esta ideia?
As pessoas com fé precisam de ter melhor educação científica. Quanto aos cientistas, não sei o que podem fazer: alguns defendem de forma racional e sustentada que a religião e a ciência são incompatíveis.

Por que diz que o criacionismo é má religião?
O criacionismo e o design inteligente não são compatíveis com a religião porque implicam que o designer é um mau designer, permitindo crueldade e sofrimento. A evolução explica estas coisas como o resultado de um processo natural, da mesma forma que explicamos terramotos, tsunamis ou erupções vulcânicas. Não devemos atribuí-los a uma acção de Deus.

Uma área em que a religião e a ciência parecem estar em desacordo é a homossexualidade. Quem tem razão?
Há agora provas de que a predisposição para a homossexualidade é geneticamente determinada, por isso há uma componente biológica e negá-la não é correcto. Algumas religiões condenam como imorais as relações sexuais entre pessoas do mesmo género. Tal pode ser julgado enquanto matéria moral. Temos de destrinçar o que pertence à esfera da moralidade.


O que diria a pessoas como Richard Dawkins, que defendem que não precisam de religião para terem uma vida moral?
Pode-se aceitar valores morais sem se ser religioso. Contudo, em grande medida, as pessoas têm os seus valores morais por associação à sua religião.

Acredita em Deus?
Não respondo a questões sobre as minhas crenças pessoais.

Há milhares de religiões, muitas mutuamente contraditórias. Não podem estar todas certas.
Correcto. É uma questão de fé. Não há maneira de demonstrar a superioridade de uma religião. Verdadeira religião é a que nos calha acreditar.

Sou ateu. Estou a perder alguma coisa?
Não, porque pode ter uma vida cheia de sentido sem fé em Deus. Mas muitas pessoas vivem na pobreza e na miséria. É a fé que lhes dá alguma esperança e sentido. Eu não quero roubar-lhes isso.

A melancia ateia

Paródia às provas de Deus encontradas nas situações mais ridículas.

Anselmo Borges: Nós e os outros

Louis Bolk (1866-1930)

"Num mundo global, cada vez mais multicultural e de pluralismo religioso, é urgência maior repensar a identidade e avançar no diálogo intercultural e inter-religioso".

Texto de Anselmo Borges no DN de hoje.

Nos anos 20 do século passado, Louis Bolk avançou com a teoria da neotenia, posteriormente seguida e aprofundada por biólogos e filósofos. Constata, no essencial, que o Homem é um prematuro - para fazer o que faz, precisaria de permanecer no ventre materno mais um ano, mas isso não é possível; assim, nasce no termo de 9 meses, em vez de passados 20 -, tendo, portanto, de receber por cultura aquilo que a natureza lhe não deu. Frágil segundo a natureza e sem especialização, tem de criar uma espécie de segunda natureza ou habitat, precisamente a cultura. Como escreve o filósofo Robert Legros, "é na cultura ou no que a fenomenologia chama um mundo que a humanidade de Homo encontra a sua origem, e não na natureza. Quanto à origem da cultura, ela está por princípio votada a permanecer uma questão sem resposta".

Enquanto os outros animais nascem feitos, o Homem, nascendo por fazer, em aberto, tem de fazer-se a si mesmo e caracteriza-se por essa tarefa de fazer-se com outros numa história aberta, em processo.

Constata-se deste modo que nos fazemos uns aos outros genética e culturalmente. Os meninos--lobo mostram-nos que nos tornamos humanos com outros humanos. Eles tinham a base gené- tica de humanos, mas faltou-lhes o encontro com outros homens. O ser humano é, pois, sempre o resultado de uma herança genética e de uma cultura em história.

Assim, no processo de nos fazermos, o outro aparece inevitavelmente. O outro não é adjacente, mas constitutivo. Só sou eu, porque há tu, em reciprocidade. O outro pertence-me, pois é pela sua mediação que venho a mim e me identifico: a minha identidade passa pelo outro, num encontro mutuamente constituinte.

Repare-se, porém, como, analisando o étimo de encontro, aparece não só esta relação constituinte, mas também a indicação de embate e contraposição, assinalados no "contra" da palavra encontro, que aparece igualmente no espanhol "encuentro", no francês "rencontre", no italiano "rincontro", no alemão "Begegnung", com a presença de "gegen", que significa contra, precisamente.

Então, o outro é vivido sempre como fascinante e ameaça. Os gregos, por exemplo, chamavam bárbaros aos que não sabiam falar grego, mas tinham fascínio por outros povos, concretamente pelos egípcios.

O outro é outro como eu, outro eu, e, simultaneamente, um eu outro, outro que não eu. Daí, a ambiguidade do outro. O outro enquanto outro escapa-se-me, não é dominável. Nunca saberei como é viver-se como outro. Quando olhamos para outra pessoa, perguntamos: como é que ela se vive a si mesma, por dentro?, como é que ela me vê?, como é o mundo a partir daquele foco pessoal?

Porque é simultaneamente, tanto do ponto de vista pessoal como grupal e societal, um outro eu e um eu outro - outros como nós e outros que não nós -, o outro atrai ao mesmo tempo que surge como perigo possível. Há, pois, uma visão dupla do outro, que tanto pode ser idealizado - no amor, é divinizado -, como diabolizado. Atente-se na ligação entre hospitalidade e hostilidade, que derivam do latim "hospite" e "hoste", respectivamente. Cá está: o outro é hóspede, por exemplo, no hotel e no hospital. Mas, no hotel, que em inglês se diz "hostel" e em espanhol "hostal", em conexão com hostil, pedem-nos, por cautela, a identificação. E a fronteira, porta de entrada e de saída, em ligação com fronte - a nossa fronte somos nós voltados para os outros e ao mesmo tempo ela é limite e demarcação de nós -, anuncia o outro - outro país - e é espaço de acolhimento e também da independência.

No quadro desta ambiguidade, entende-se como, por medo, ignorância, desígnios de domínio, se pode proceder à construção ideológica e representação social do outro essencialmente e, no limite, exclusivamente, como ameaça, bode expiatório, encarnação e inimigo a menosprezar, marginalizar, humilhar e, no limite, abater, eliminar.

Num mundo global, cada vez mais multicultural e de pluralismo religioso, é urgência maior repensar a identidade e avançar no diálogo intercultural e inter-religioso.

17 de Abril de 858. Morre o Papa do tempo da Papisa Joana - se esta tivesse existido

Bento III foi Papa de 855 a 858. Morreu no dia 17 de Abril, com fama de santidade. Pouco se sabe deste Papa, para além de ter tido um opositor, o antipapa Anastácio, e de ter repreendido os bispos francos, atribuindo ao seu silêncio a desordem no império.

Sabe-se, no entanto, em parte por causa das moedas deixadas, que sucedeu a Leão IV (que morreu em Julho de 855), tornando inverosímil o pontificado da Papisa Joana, que, a ter existido, situar-se-ia entre Leão VI e Bento III (roubando pontificado a este).

Na realidade, a lenda não passa disso mesmo: uma lenda. Publicada pela primeira vez no séc. XIII a lenda da Papisa Joana é claramente antipapal. Até os enciclopedistas franceses, nem sempre simpáticos para os papas, reconheceram que se tratava de uma história falsa.

Sinodalidade e sinonulidade

Tenho andado a ler o que saiu no sínodo e suas consequências nacionais, diocesanas e paroquiais. Ia para escrever que tudo se resume à imple...